Cocote, uma galinha especial


Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?

Há muitos e muitos anos, num distante país da África, vivia Cocote, uma galinha (quase) como todas as outras.
Cocote morava num galinheiro, habitado por outras vinte galinhas.
O dono do galinheiro alimentava sua criação de milho e resto de casca de legumes. Todos os dias ele entrava no galinheiro, jogava o milho e as cascas de legumes e, em seguida, ia recuperar os ovos botados pelas galinhas. Somente de tempos em tempos, uma galinha terminava na panela de pressão.
Pois bem. Cocote, ao contrário de suas colegas, não botava ovo, mas passava o dia tricotando. Tricotava cachecóis que utilizava no inverno, quando a temperatura do galinheiro caía de 50 graus para 45 graus celcius.
A primeira vez que Cocote tricotou, foi um cachecol azul celeste. Quando as galinhas do galinheiro viram aquela belezura, ficaram encantadas. Quem nunca ficava encantado com Cocote era o dono do galinheiro que, cada dia que passava para recolher os ovos, partia batendo a porta e exclamando que Cocote ia virar galinha no molho se não botasse ovos!
Foi então que as outras galinhas tiveram uma idéia brilhante: todos os dias depositariam 4 ovos no ninho de Cocote. Em troca elas reclamariam, cada uma, um cachecol.
Cocote, que não era boba, aceitou a troca. Passou a tricotar sem parar: eram linhas amarelas, azuis, vermelhas, roxas, verdes... Enfim, eram cachecóis de todas as cores que desfilavam pelo galinheiro.
Um belo dia Cocote começou a tricotar o mais belo dos belos cachecóis. Assim que ficou pronto, todas das galinhas ficaram de bico aberto. Logo começaram a cacarejar, dizendo que queriam o mesmo. Cocote, mais uma vez, aceitou e se pôs a tricotar duas dezenas de cachecóis pretos com bolinhas brancas.
Foi assim que Cocote não virou galinha no molho e acabou criando moda. Mas foi assim também que nasceram todas as galinhas d'angola do mundo.

Cocote, uma galinha especial



Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?

Há muitos e muitos anos, num distante país da África, vivia Cocote, uma galinha (quase) como todas as outras.
Cocote morava num galinheiro, habitado por outras vinte galinhas.
O dono do galinheiro alimentava sua criação de milho e resto de casca de legumes. Todos os dias ele entrava no galinheiro, jogava o milho e as cascas de legumes e, em seguida, ia recuperar os ovos botados pelas galinhas. Somente de tempos em tempos, uma galinha terminava na panela de pressão.
Pois bem. Cocote, ao contrário de suas colegas, não botava ovo, mas passava o dia tricotando. Tricotava cachecóis que utilizava no inverno, quando a temperatura do galinheiro caía de 50 graus para 45 graus Celcius.
A primeira vez que Cocote tricotou, foi um cachecol azul celeste. Quando as galinhas do galinheiro viram aquela belezura, ficaram encantadas. Quem nunca ficava encantado com Cocote era o dono do galinheiro que, cada dia que passava para recolher os ovos, partia batendo a porta e exclamando que Cocote ia virar galinha no molho se não botasse ovos!
Foi então que as outras galinhas tiveram uma ideia brilhante: todos os dias depositariam 4 ovos no ninho de Cocote. Em troca elas reclamariam, cada uma, um cachecol.
Cocote, que não era boba, aceitou a troca. Passou a tricotar sem parar: eram linhas amarelas, azuis, vermelhas, roxas, verdes... Enfim, eram cachecóis de todas as cores que desfilavam pelo galinheiro.
Um belo dia Cocote começou a tricotar o mais belo dos belos cachecóis. Assim que ficou pronto, todas das galinhas ficaram de bico aberto. Logo começaram a cacarejar, dizendo que queriam o mesmo. Cocote, mais uma vez, aceitou e se pôs a tricotar duas dezenas de cachecóis pretos com bolinhas brancas.
Foi assim que Cocote não virou galinha no molho e acabou criando moda. Mas foi assim também que nasceram todas as galinhas d'angola do mundo.

Umbigo

Pela primeira vez na vida, me deparo com o fundo do meu umbigo. Não sei quantos de vocês sabem, mas ele sempre foi um buraco negro, um espaço sem fim que serve para se comunicar com minhas entranhas. Ponto central do meu corpo.
Durante muito tempo pensei, e senti, que meu umbigo não tivesse cicatrizado, engolindo o dia e a noite, como a linha do horizonte faz com o sol e as estrelas.
Lavá-lo sempre foi uma tarefa complicada. Terminava por ter litros de água dentro da barriga, como se tivesse bebido um balde inteiro. Assim o tempo passou, como se meu umbigo fosse uma segunda boca alimentada pela vida. Virou um órgão interno que não consta nos manuais de anatomia.
Uma vez, durante a noite, meu umbigo resolveu sair do buraco e fazer uma exploração pelo meu corpo. Que belo mundo, pensou. Em suas andanças, descobriu o que deveria ser o topo de uma montanha. Lá de cima ele podia ver um segundo cume. Decidiu ir ver, mas como eram dois cumes parecidos, não soube onde ficar e foi embora. Descobriu um vale tão longo que não via o fim. Achou divertido, pois era um vale sem água, sem rio que passa, sem cachoeira que canta. Admirado, não percebeu que as duas paredes do vale se separavam, tornando-o um pricipício ! Agarrou-se em uma das peredes e escalou : subiu, subiu, subiu. De tão cansado que estava, quando chegou no topo, resolveu dormir.
No dia seguinte, quando acordei, não reparei que havia algo errado com meu corpo. Foi somente no final do dia, durante o banho, que não encontrei mais meu umbigo para lavar ! Vi uma barriga sem umbigo. O que eu achava ser um buraco negro, tinha desaparecido, virado fumaça. A porta de entrada em mim mesma era, agora, uma superfície lisinha como massa de pão posta para descansar.
Que desespero ! Que agunia ! A água escorria pelo corpo, lisa.
Foi então que comecei a reparar que, no meu corpo, um lugar tinha uma sensação estranha. Aquela sensação de inchaço ao lavar meu umbigo, tinha mudado de lugar. Meu umbigo querido estava mais embaixo. Oh, cansado de sua escalada, dormiu na minha coxa esquerda ! Joguei um jato d’água. De tanto susto, ele acordou num pulo e foi parar na palma de minha mão. Olhei para ele, bem de frente, e perguntei o que ele estava fazendo por lá. Envergonhado, ele ficou vermelho e, em seguida, tentou escapar, escorrendo por entre os dedos. Recuperei-o logo antes de ser engolido pelo ralo. Imagina, ficar sem umbigo ?
Peguei-o firme entre os polegares e expliquei a importância que ele tinha na minha vida. Disse que, misterioso, ele não merecia ser perdido, mas desvendado. Depois de muita água escorrida, ele se convenceu em voltar a seu lugar de sempre.
Lá ficou e, durante muito tempo, se calou. Pensei que estivesse bravo comigo, pois nem mais se enchia d’água durante os banhos. Me enganei.

Somente agora, anos depois, que desvendo o mistério do meu umbigo : com duas lentilhas crescendo dentro da barriga, meu umbigo é obrigado a mostrar seu fundo. Envergonhado, ele tentou partir para não me deixar ver sua branquice.
Entramos num acordo e, sempre que posso, levo-o para tomar sol na beira da piscina.

AVENTURA DE UM VIAJANTE


(lembranças da época que Ronaldo Bressane ainda corrigia meus escritos. E hoje, quem pode me socorrer hein?)

Estava partindo quando cheguei. O trem estava previsto para sair cedo, mas nem tanto. Deu tempo de correr e, por pouco, pegá-lo. Atrás de mim a porta se fechou. Com a mala na mão passei o olhar no vagão procurando um lugar para sentar: aquela senhora me parecia muito suja, suas mãos repletas de rachaduras... Me dava asco! Resolvi por sentar num banco vazio um pouco atrás desta figura, colocando a mala sobre meus pés.
Lá fora chovia, o vidro embaçado atrapalhava minha visão, mas não dei importância, logo chegava numa estação. No trem entrou um homem de vestimenta arrumada: usava sobretudo preto e cachecol, sua beleza me chamara a atenção. Por um momento ele ficou admirando o vagão e depois se sentou bem ao lado daquela senhora nojenta!
Matutava comigo mesma “por que não sentara ao meu lado? Devia ser mais agradável. Quem sabe ele não tivesse me visto! Ainda estaria em tempo de mudar de banco...” Mas um senhor rechonchudo sentou ao meu lado; não que ele me apertasse, e quase num ato instintivo me espremi ao lado da janela. Diferente da mulher, suas mãos não eram gastas e ele não me dava asco! pelo contrário, suas linhas curvas me atraíam e eu sentia vontade de tocá-las, talvez fossem como grandes gelatinas. E além de tudo devia ser muito diferente do belo homem de sobretudo, pois não havia se incomodado em sentar ao meu lado.
Não conseguia tirar os olhos daquela perna coberta por uma calça xadrez de um tecido muito bonito, minhas mãos queriam aproximar e meu corpo agia incontrolavelmente. Com tal sentimento minha cabeça bolava como sempre planos mirabolantes...
“Se eu colocar minhas mãos sobre sua perna e der um apertão? Acho melhor não, talvez ele comece a gritar ou suas mãos pesadas venham esbofetear minha magra aparência! Seria vergonhoso.” Estava me acalmando e prestando atenção na chuva quando tive a impressão de que o senhor obeso me olhava; sentia sua respiração bem próxima ao meu ouvido, seu calor æ apesar de não fazer sol ele suava æ me esquentava e fazia embaçar ainda mais o vidro; continuei olhando para fora.
Agora eu fingia dormir e deixava que minha mão æ no tremeliço do trem æ caísse sobre suas pernas: me sentia feliz, mas não era o que desejava.
O homem de sobretudo levantou-se, deu mais uma olhada no vagão (continuou não me vendo), arrumou o cachecol e desceu na próxima estação. A senhora ao seu lado não se contentou, sua face desfalecia em desgosto com a partida do moço.
Em uma das curvas que o trem fez, surgiu então meu primeiro ato de abuso: ainda entre pálpebras, olhava a reação daquele magnífico ser. Me parecia que brotava no seu rosto rosado uma sombra de sorriso que me alegrava! As fantasias não corriam mais no ritmo do trem. O balanço suave se tornava perturbador e eu precisava satisfazer meu ego. Logo o sorriso se tornara amargo, ele via meus olhos se abrirem num preguiçoso (e fingido) movimento; ele ajeitou a postura e passou a mirar a velha rabugenta que acabara de ficar só, em seguida olhou para a janela e por fim se fixou na mulher.
Como alguém que não entende muito mas o suficiente, percebi que para o senhor havia um desejo além de tocá-la... Talvez não fosse como eu sentia ou queria, e o fato foi que ele não despregou o olho daquela bruxa (se é que aquilo no seu nariz é mesmo uma verruga!). Ao mesmo tempo que esta situação me irritava, me possibilitava seguir com os planos adiante.
Disfarçadamente coloquei minha mão dentro do bolso, virando a palma para o lado daquela perna saliente; e fingindo procurar algo toquei bem na coxa do senhor, que parecia uma grande montanha, onde com dificuldade chegaria ao topo. Pensava em ali brincar com minha “eterna infância”, que fora interrompida pelo medo. Tirei a mão do bolso colocando-a sobre minhas pernas.
Em meio à terríveis trovoadas e chuva forte pude ver que mais á frente estava um túnel, por onde o trem passaria dali alguns minutos. Seria a grande hora para me fazer feliz; com seus olhos tão longe de mim (e fixos numa outra figura) poderia me jogar em cima daquele homem robusto; poderia aperta-lhe a barriga e a face, poderia por mais um instante brincar como na infância.
Enfim o túnel! Não sabia se dispunha de muito tempo, mas uni todo meu desejo e força num pulo abocanhador...! Caí de cara no banco, sem encontrar a minha montanha, ele havia desaparecido em meio à escuridão.
Desapontada, ainda deu tempo de voltar ao meu assento e fingir-se bem antes que o túnel acabasse.
Com a volta da luz percebi que não tinha ninguém ao meu lado, olhando para frente pude ver que o “meu” senhor obeso estava sentado ao lado da velha fingindo coçar a cabeça para que ao menos seu cotovelo pudesse tocá-la... Ela retribuía com um sorriso.

Gastronomia e convicções



Desde às greves e manifestações dos empregados de vários mcdonalds que aconteceram há alguns anos na França, sempre achei que que o bom francês preferia a boa baguete da padaria da esquina aos hamburguers, todos com mesmo gosto e de mesma forma, da cadeia multinacional vermelho e amarela.
Me enganei.
Na semana passada, assitimos no Centro de Lazer onde trabalho, a um espetáculo para crianças sobre o olfato. A historia era, em suma, uma apologia à boa brioche (pão de forma) francês. Os ingredientes para se fazer o tal pão eram personificados e o conflito da história acontecia quando um bando de batatas fritas e hamburguers tentavam roubar o pãozinho quentinho e gostoso feito por uma fada.
No final, os hambuguers e as batatas fritas perdem a batalha, porque toda boa fada pode fazer desaparecer as desgraças alheias. A brioche reaparece e as crianças podem saboreá-la. Parece ter tido, neste curto espetáculo teatral, uma crítica da qualidade da alimentação dos pequenos franceses. Mas, fazer desaparecer tais hamburgers, é quase impossível .
Aqui onde trabalho Mc Donalds é sinônimo de curtição e de gastronomia!
Curtição, porque ao invés de comer legumes, comerão fritas e hamburguers. Existem mesmo aqueles que afirmam que os saunduiches vendidos são nutritivos porque contém proteínas, salada e pão. Para as crianças existe um atrativo a mais: você compra o sanduiche e ganha um brinquedo em miniatura. A criança come, não sente o gosto. Esquece que comeu. E pede outro. Não porque ainda tem fome, mas para saber qual será o próximo brinquedo a ser ganho. E os pais, contentes que o filho coma, compram mais um cheeseburguer.
Para os adolescentes e jovens adultos franceses de uma certa classe social, Mc Donalds é o ponto de encontro. Ao invés de irem beber uma cerveja no buteco ou fazer uma festinha de aniversário na casa do amigo, preferem se entupir de coca-cola num mcdonalds de algum shopping center da vida. Como se o fato de comerem esses sanduiches os aproximassem do consumidor que compra seu perfume Kenzo na loja da frente. Pensam que Mc Donalds é bom porque sociabiliza. "Eu gosto de Mc Donalds, você gosta de Mc Donalds, então a gente pode sair um dia para comer no Mc Donalds".
Aqui ninguém convida ninguém para comer uma baguete, porque é raro uma padaria aqui na França que tenha mesas e cadeiras. Sem contar que nas padarias encontramos sanduiches feitos numa baguete e recheados com queijo emental e presunto.
Oras, para quê tais sanduiches se, Mc Donalds cria outros mais saborosos, como o "tartiflete", que deve ser a mesma coisa que o "royal chesse" acrescido de batatas transgênicas?
Vem aí uma geração que nunca ouviu falar em alimentação equlibrada e tão pouco da refinada e saborosa gastronomia francesa!

vento norte


Meu amanhã é uma bolha de sabão.
nasce de um sopro certeiro,
voa pro sul quando é vento norte,
sobe numa corrente de ar quente,
desce inesperadamente com o peso da água
que escorre pelas paredes finas e se condensa numa quase gota.
antes de perdê-la de vista, explode nas mãos de um menino
que ri
e que sai correndo para estourar a outra bolha,
já tão transparente que confunde-se com o céu azul.

O toque do menino no meu amanhã me faz cócegas.
Me contorço antes de arrebentar
Me transformo nas gotas de onde vim.

É assim que meu amanhã gosta porque ele é único. Não é para soar como poesia porque ele não é linguagem, não é palavra, não é som que sai da boca. Mais leve que tudo isso. Meu amanhã pesa menos que a letra a, nem faz barulho como quando uma uva madura cai no chão de terra batida num som surdo. Lá longe alguém passa o cortador de grama sem saber que a bolha que o menino não pegou veio pousar ali. Desceu devagar como um pousar de cegonha, de homem que pulou de pára-quedas: não é Ícaro pousando. Ele coloca seus braços para trás, uma perna um pouco dobrada e a outra estendida, como se um fil o puxasse para o chão. Ele ainda flutua pararelo à grama alguns metros e, quando seus pés tocam o solo, o vôo se completa, ele volta a ser homem. Bonito como ver uma cegonha que pousa no seu ninho.
Antes de amanhã ele nunca tinha visto cegonha voar nem pousar. Cegonha era mito de criança que ainda brincava com bolha de sabão. Perguntava um dia pros pais como a gente vem ao mundo e eles respondiam com a cegonha. Não sabiam portanto que era coisa impossível pois a gente vem-a-ser, tudo acontece amanhã. Assim deveríamos vir ao mundo numa bolha de sabão. Um ovo. REdonDO. Pluft. Lá de dentro um homem de pára-quedas.
Amanhã nasce o Homem. Imaginem um céu repleto de bolhas de sabão durante o dia e de estrelas durante a noite. Nenhuma crise existencial. Homem que já nasce sabendo voar. Por hora me contento do meu vir-a-ser, este porvir natural que acontece quando sentimos cócegas.
Vai, deixe o menino te tocar antes que ele corra rindo e esqueça de você pousado naquela grama, que será podada mais cedo ou mais tarde.

Vai-e-vem


Pra lá
Pra cá
Pra lá
Pra cá
Pra l...
BUM

Foi assim que ela caiu da rede montada na árvore. Mas nem chorou. Achou engraçado porque foi tão alto que sentiu um frio na barriga. Pegou a rede e subiu novamente.
Pra lá
Pra cá
Pra lá
Pra cá
Pra lá
Pra cá
Pra lá
Pra c...
DORMIU
Sonhou com um peixe enorme, todo colorido, todo brilhante, todo viscoso que subia pelo riacho. Ele era tão grande que sua nadadeiras eram como patas apoiando nos pedregulhos para avançar. No final do riacho o peixe viu uma árvore com uma rede dependurada. Continuou até poder empurra-la.
Pra lá
Pra cá
Pra lá
Pra lá
Pra lá
ACORDOU
Enrroscada num galho de árvore como um casulo de borboleta. Olhou para baixo, mas era tão alto que não podia descer. Pensou como podia fazer. Quis gritar, mas preferiu se acalmar. Saiu do casulo, pôs um pé no tronco, o outro e foi descendo. Chegou no chão, olhou para cima e exclamou:
- Amanhã irei mais alto que nenhum peixe poderá me pegar!
No dia seguinte, a rede já desenrrolada, balançava sozinha com o vento. Ela veio correndo e tudo recomeçou. Mas desta vez ela não caiu, nem dormiu, nem sonhou. Foi tão alto que lá de cima viu
riacho
folha
peixe
folha...

Retrato de Brasília

Brasília é uma cidade utópica. Não porque Niemayer a planificou, e sim porque eu não conheço Brasília e, quando eu não conheço, tudo se transforma em utopia ou em mito. O que é muito simpático, pois vejo sem ver e assim me permito fazer seu retrato.
Dizem que Brasília tem a forma de um avião. Hoje isso soa anti-ecológico, pois são os aviões uns dos maiores poluidores da nossa época. Mas também sonha o sonho de todo homem que sempre sonhou em voar. Coisa simples, pois no cerrado o ar quente sobe rápido e os 33 graus celcius de massa de ar quente fazem quase toda folha de papel voar. Mas em Brasília não tem papel pelas ruas : primeiro porque é anti-higiênico, segundo porque é anti-utópico (toda cidade utópica vive sem papéis), terceiro porque pegaria fogo. Explico-me. Niemayer projetou Brasília já pensando nos problemas fundamentais do cerrado : sol é sinônimo de calor que é sinônimo de mais calor que, ainda mais quente vira sinônimo de fogo. O avião seria símbolo da urgência, sair correndo, voar para longe o mais rápido possível em caso de fogo.
Mas niemayer não era besta. Sabia que nada torra em Brasília porque o calor é seco, então o avião virou símbolo da modernidade e não da urgência. Gostaram da idéia e dizem ter transformado Brasília em capital.
Mais interessante do que a forma de Brasília é o seu conteúdo. Já ouvir dizer que Brasília atrairia gente de todo tipo em busca de uma vida melhor. Mas a adaptação fundamental à esta nova cidade passaria não só pela adapatação econômica, mas também pela adaptação fisiológica de seus supostos habitantes. Em terra quente e seca os indivíduos podem continuar a usar terno e gravata, pois o sol faz arder, mas não faz suar. Andam prá lá e prá cá, circulando no corredor principal do avião, indo ao toilette de vez em quando, sentando em poltronas confortáveis e ligando televisões individuais. Não transpiram, então economizam água, pois não a bebem com frequência nem se tornam neróticos com o lavar roupas, carros e calçadas. A falta de água no organismo causa ressecamento da pele, como no chão do cerrado. O povo que dizem lá viver, para amenizarem o desgaste da pele seca, enrrugada, da velhice precoce, parece andar com um paninho num bolso e com uma garrafinha de água no outro. Mas não é água potável, pois a falta de sede seria menos importante que o excesso de rugas : molhariam o paninho de água e colocariam na cara até que a última gota fosse absorvida. Pensariam nas rugas, mas dizem esquecer das pedras nos rins. Sem suor, sem sede, sem urina e com pedras nos rins. Parece que os hospitais de Brasília recebem todo ano uma quantidade gigantesca de gente sem rugas e com pedras nos rins. O problema todo vem do sistema de educação que não teria tempo de ensinar aos pequenos que beber água é mais importante que coloca-la na cara. Não teriam tempo porque as escolas fechariam 10 vezes ao ano, quando a taxa de umidade relativa do ar passa abaixo dos 10% . As crianças não ficam horrorizadas porque seus lábios ressecados racham, mas porque os cabelos, outrora dominados pelos secadores e chapinhas ficam duros como piaçava !
Não conheço Brasília, mas acho que a próxima vez que encontrar alguém sem rugas, com cabelos de piaçava, de terno e gravata sem suar, mas se contorcendo de dor por causa de pedras nos rins, saberei de onde ele vem. Só então os habitantes de Brasília poderão se tornar reais para mim : porque os reconheço no meu retrato. Brasília ? Ah, será sempre utópica uai !

(ps- correção: Brasília foi projetada por Lúcio Costa e não Niemayer...um motivo a mais para provar meu desconhecimento da cidade!! hihihi)

Le dernier métro


Le dernier métro s’approche. La seule personne est une femme habillée pour la nuit. Une prostituée. Elle est assise au fond du quai, bien maquillée et avec une cigarette non allumée à la main. Le train s’arrête, elle met la cigarette dans la bouche, elle se lève en rangeant la minijupe et entre dans le wagon. Il n’y a personne dedans, mais elle s’assoit sur un strapontin, proche de la porte. Encore avec la cigarette dans la bouche, elle tourne la tête dans l’espoir de trouver quelqu’un de solidaire qui puisse lui prêter le briquet. Ses lèvres bougent en disant quelques mots et la cigarette tombe par terre.
Le métro s’arrête à la prochaine station et à cause du freinage, la cigarette roule par au-dessous de strapontin. Elle baisse la tête pour la chercher et elle aperçoit que la cigarette est coincée à un emballage plastique au-dessous du banc derrière. Elle se lève en même temps qui le métro quitte la station et, par conséquent, la cigarette roule dans le sens inverse et arrête au-dessous de l’autre banc. L’haine envahi la prostituée qui se met à dire de gros mots. Elle tourne et se baisse vers l’autre banc, prend la cigarette et, avant de retourner au strapontin, elle regarde derrière avec l’air d’interrogation. L’emballage inspire curiosité et la demoiselle va la chercher. Elle met la cigarette dans la bouche.
Il s’agit d’une bouteille bleu foncée et opaque. On ne voit pas ce qu’il a dedans. Elle l’agite. Contenu liquide. Bouchon serré. Un litre. Personne l’a touché auparavant. Doucement elle le fait tourner et l’odeur du liquide sort immédiatement. De l’essence ! Exclame-t-elle dans sa pensée. Un sourit apparaît dans sa face. Elle jette la cigarette dans son sac et ferme la bouteille. Le métro s’arrête à la station suivante et elle sort. Mettre feu partout. Incendier le métro. Mais elle n’a pas d’allumettes, ni de briquet. Le vendre et faire quelques sous. Un litre n’est pas beaucoup. Rien de cela passe dans la tête de la prostituée.
Marieva, elle s’appelle. Elle sort du métro en courant et elle prendre la rue dans le sens inverse de celui que le métro est venu. Quelques minutes plus tard elle se trouve dans une place sombrée, elle regarde d’un côté à l’autre en cherchant quelque chose ou quelqu’un. Elle s’approche d’une voiture garée. Elle ouvre son sac, prend une clé, ouvre le compartiment de l’essence et pense : « ce soir je n’irai pas travailler en métro ». Elle part en accélérant en direction de l’avenue.

Les toits


Il faisait beau ce matin, pensa-t-il. La femme du sixième étage nettoyait l’armoire. Elle portait un gant en plastique verte et enlevait doucement toutes les habilles. Pour chaque une elle vérifiait le moindre détaille : des taches, une coudre mal faite, une étiquette arrachée. Celles qu’elle trouvait un problème, elle les pliait et mettait dans une valise, les autres elle pliait et empilait sur le lit. Armoire vide, elle enlevait des morceaux de papier peint qui servaient de protection aux étagères et les mettaient à côté. Parfois une mèche de cheveux tombait sur la face et avec le derrière de la main elle la dégageait par-derrière l’oreille. Elle balbutiait des mots tels que pour accompagner les paroles d’une chanson. Peut-être que la radio ou la télévision étaient allumées, mais la lumière de fin de journée créait une ombre dans la pièce qui ne laissait pas percevoir plus de détailles. Il était même impossible de dire les couleurs des murs et s’il y avait quelqu’un d’autre dans l’appartement. Puis avoir tout enlevé, elle a pris toutes les vestes qui étaient pliées sur le lit et les a remis dans l’armoire, n’occupant plus que sa moitié. Elle est disparue dans la pénombre. Il faisait encore un peu jour et Auguste a pris sa brosse pour nettoyer les cheminées, sa veste sale de charbon, son échelle et s’est mis à descendre du toit de l’immeuble en face.
Déjà dans la rue et ses affaires dans le camion, il a pris la route de sa maison. Plus une journée sur les toits était passée, mais c’était la première fois que, au lieu de se détendre avec le paysage rempli de cheminées qui accèdent à l’horizon, Auguste se distrairait avec la vie personnelle de quelqu’un. Il se crût un voyeur, pensée que ne lui a pas du tout gêné. Dans l’embouteillage du Boulevard Périphérique il n’a pas pu éviter d’imaginer des histoires ; de savoir le pourquoi la femme du sixième arrangeait l’armoire d’une telle façon. Il ne pouvait pas s’agiter d’un rangement habituel.
Dans ce même jour, elle aurait reçu la confirmation d’un voyage. Elle aurait rangé son armoire afin de savoir quoi ramener. Après avoir fini, elle aurait descendu vers le café du cartier pour raconter les derniers préparatifs à sa meilleure amie. Elles seraient restées tard le soir en train de rêver et de donner des bonnes rigolades. La copine serait enfin contente parce qu’elle devrait recevoir des cartes postales et devrait hériter les vestes qui ne partiraient pas dans la valise. Auguste est arrêté au feu rouge derrière une voiture ancienne quand il l’a aperçu. Ce n’était pas une histoire possible. Un nettoyeur de cheminées ne comprendra jamais.
Il décida de ne pas prendre sa tête à cause d’une histoire banale. Il était fatigué et le lendemain il avait encore une dizaine de cheminées à nettoyer. Il prépara une ratatouille dans une casserole rouge et pendant qu’elle cousinait, il a enlevé sa veste de poussière noire pour prendre une douche froide et revigorante. L’eau écoulait avec force et lui faisait penser à la pluie que parfois le prendre de surprise sur le toit. Auguste ne se sentait pas bien. Une chaleur envahissait son corps, comme dans un état fébrile. Il n’avait plus faim et l’image de la ratatouille lui produisait de cauchemar. Encore enroulé à la serviette de bain, il fut à la cuisine éteindre le feu et il glissa dans le lit.
Dans son rêve, la femme du sixième étage était à sa fenêtre avec ses gants verts. Elle faisait des signaux à Auguste, qui était sur le toit de l’immeuble en face. Elle lui appelait. Il fut. Au sixième étage, il a ouvert la porte et il entra. Il n’y avait personne. La femme n’était plus là. En face de l’armoire remplie à la moitié, une personne habillé d’une veste sale de charbon, nettoyait les étagères avec une brosse. Auguste reconnaissait dans la personne sa propre image. La transpiration avait mouillé les draps et Auguste grelottait, mais la fièvre était tellement intense qu’il ne se réveilla même pas. Il était malade de cette histoire.
Le lendemain, il se réveilla sans aucun souvenir. Rien. Pas de trace de rêve. Pas de mémoire de la journée précédente. Il n’a jamais eu une femme en gants verts au sixième étage. Ni la femme réelle, ni celle du rêve. Il n’avait plus de fièvre. Les draps étaient déjà secs par la chaleur ambiante. La seule marque était la ratatouille cuite sur le four. Mais Auguste ne l’a pas remarqué. Il a pris sa veste de travail et il est parti comme d’habitude.
Du sixième étage de l’immeuble, il regarda l’horizon. Il fait beau ce matin, il pensa. Avec la brosse, il nettoyait chaque cheminée. La sueur filait par la tête et avec le dos de la main il l’essuyait. Il enleva sa veste parce que la chaleur empêchait de bien travailler. Et au moment qu’il se tourna pour la poser sur le toit, il aperçoit au sixième étage de l’immeuble en face une femme en gants verts qui rangeait l’armoire. Elle se tourne, une mèche de cheveux tombe sur le front, mais elle ne la touche pas, elle s’approche de la fenêtre, regarde l’horizon, ferme les volets et disparaît dans la pénombre pour toujours.

Meio pássaro


Acho que nasci meio pássaro. Não porque voe. Não porque pie, faça ninho ou se reproduza durante a primavera. Todo pássaro que é pássaro tem penas e bicos. Nem todo pássaro voa. Pinguim não voa. Eu também não.
Em todo caso, pássaro que é pássaro representa um ideal de liberdade que há tempos inspirou Ícaro, Santos Dumont e que hoje inspiram os amantes de base-jump que percorrem os fiordes da Noruega. Não salto de base-jump, nunca voei de asa-delta. Já me pendurei num varal para ver se me secava como roupa lavada-molhada. Não vôo, sou livre, mas não por isso sou pássaro.
A passarada, seja na água ou no ar, sente-se à vontade no seu meio. Rodopia e rodopia sem reclamar de tontura. Hoje mesmo um passarinho de plumas azuladas pousou num galho de árvore que começava a desabrochar. Um pássaro que é pássaro sabe se fixar no galho, mas não sabia que ele podia fazer malabarismo ! Ele rodopiava em torno do galho como um ginasta em torno de sua barra, tal qual uma espiral imóvel. O máximo que faço de malabarismo é jogar com três bolinhas, mas também não sou pássaro por isso.
Todo pássaro que voa, vê de cima. Escolhe o local onde pousar, onde dormir, onde comer, onde se acasalar. Eu sou um pássaro que vivo avoando, vivo avoando, sem nunca mais parar, ai-ai ai-ai saudade não venha me matar. Escolhi onde pousar, onde dormir, o que comer, onde me acasalar, morro de saudades, mas não é por isso que sou meio pássaro.
Minha passarice vem de outro caso.
Tem muita gente que não escolhe onde pousar. Pousa onde pousa e basta. O problema é que logo começa a piar (reclamar), deixa de fazer ninho para nunca mais se reproduzir. Faz bico (manha) e compra penas novas para se sentir melhor (saia baloné é a moda do ano). Mesmo com pena, bico e piação, esses aí não são pássaros não ! Aproveitam e pegam o avião, migram de cá prá lá três vezes ao ano para dizerem que são livres. Avião nunca foi sinônimo de liberdade. Turismo também não. Migração que é migração ocorre duas vezes ao ano, inverno lá, verão cá. Contudo, para comprar novas penas o ser humano precisa do dinheiro, do trabalho e da falsa sensação migratória durante os trinta dias por ano que nos dão. Nos dão novas penas e também as datas de nossas falsas migrações. O ser humano vai, mas vai piando. Piando porque o avião saiu atrasado, porque o ninho não era quatro-estrelas como o prometido e pia, sobretudo, porque choveu o tempo todo. Aqueles que nos dão penas e trinta dias deveriam também nos dar o sol durante o período. O que adianta chegar da migração com as penas murchas e empalidecidas ? Por isso somos humanos. Piamos o tempo todo.
Minha meia passarice não vem destas bobices, mas minha humanice. A passarice vem do fato de precisar ver de cima. Escolhi onde pousar, mas ainda quero plumas novas e bronzeadas para o verão.
Tenho do pássaro o ver de cima. Ver como num mapa. Ver como no Google Earth. Funciono assim. Nunca tinha ido até a Cidade Tiradentes, mas quando precisei, sabia a direção. Paris era uma nebulosa até subir na Torre Eiffel. A cidade do Rio era uma sempertina até sobrevoá-la. Hoje poderia ir o Oiapoque ao Chuí a pé porque já fui voando. Voando na minha memória, no meu instinto migratório que, não sei como, se instalou.
Creio assim que toda condição humana depende do ser-ver pássaro. Os falsos meio-pássaros são apenas meio-falsos humanos.

Personagens na noite - homenagem à São Paulo


Personagens na noite guiados pelos traços fosforecentes dos caracóis. Isso em mil novecentos e quarenta, porque hoje em dia os personagens não andam mais às soltas por aí. Normalmente eles estão de mãos dadas e os caracóis, pobre dos caracóis, perderam a capacidade de fluorescência…estão inertes na mesma gosma de qualquer outro lesmocídio. Que aliás, diga-se de passagem, um dos nossos parentes mais próximos é um bicho horrendo que vive dentro do mar. Eu diria uma bola de pixe, mas os biólogos não iriam ficar muito contentes. Pensem bem…uma bola de pixe. Mamãe, de onde vêm os bebês ? De uma bola de pixe. Viemos todos de uma bola de pixe. Depois da chuva deveria sempre ter um acro-íris. Da mesma forma que o sol nasce todo dia. Depois da chuva deveria sempre ter um arco-íris poderia ser um exemplo das aulas de lógica. Mas não é o que acontece. Esses dias resolvi conhecer o centro da cidade, que na minha cabeça era um quadrilátero esmagado e um cruzamento. Avenida Ipiranga com a São João. De um lado, a praça da República, do outro o viaduto do Chá, do outro lado, a Estação da Luz e do último lado, a Santa Efigênia. O marco zero, bem no meio, naquela rotatória onde enfiaram um poste. Praça da Sé era só fantasia. Um lugar mítico onde as pessoas ou fazem fila, ou andam pra lá e pra cá. Uma vez li um livro que poderia se chamar Praça da Sé, um lugar fictício onde tudo começa. « Eu tenho a impressão que não é a primeira vez vez que me encontro nessa situação : com o arco completamente esticado na minha mão esquerda apontando para frente, a mão direita colocada às costas, a flecha F suspensa no ar a um terço de sua trajetória, o leão L pronto para pular a grande boca aberta e as garras para frente. Daqui um segundo, eu saberei se sim ou não a trajetória da flecha e do leão se coincidirão em um ponto X atravessado tanto por L quanto por F no mesmo segundo tx…». Um bom problema para a física, que também teria a resposta de porquê depois da chuva deveria ter sempre um arco-íris. Mas na Praça da Sé, encontrei uma igreja frequentada por pombos e um marco zero. Zero com um tatu bolinha andando bem em cima. Nesse mesmo momento, na BR-111 deve ter um filho chato sentado no banco de trás, com o corpo para frente, bem no meio do banco do motorista e do passageiro, perguntando pro pai como é que eles começam a contar os quilômetros da estrada. O pai explica que naquele caso a rodovia é federal. (Como é mesmo que eles medem as distâncias de uma rodovia federal ?) Mas que em São Paulo, por exemplo, tudo é medido em função do ponto zero que normalmente fica no centro da cidade. As ruas da cidade, as estradas, tudo é comensurado a partir desse ponto imaginário que anda sempre para os números positivos. São números reais. Fictícios, melhor dizer. Assim como a Praça da Sé da minha imaginação. Real, como ponto zero, é o tatu bola que começa sua contagem progressiva de passos. E não é que no marco zero tem um furo que deve ser a porta de entrada da frente da casa do tatu bola ! Dia de chuva deve ficar ilhado no ponto zero…É…depois da chuva deveria sempre ter um arco-íris. Mesmo durante a noite. Pelo menos assim o tatu seria iluminado. Talvez os caracóis tenham perdido sua capacidade de fluorescência devido aos arco-íris noturnos. Iluminados como os tatus bolas, perderam a capacidade de iluminar. Isso em 1940. Se bem que hoje talvez possam tornar fluorescentes os tatus bolas da Praça da Sé. Estou quase certa disto, pois numa praça imaginária com um ponto zero qualquer onde vive um tatu bola, devem existir personagens noturnos guiados pelos traços fluorescentes de alguma coisa. E como os caracóis não brilham mais, devem existir diversos personagens perdidos que vagueiam em círculos em torno do marco zero durante a penumbra da Sé. Se um dia os tatus-bola vierem a fluorescer, os personagens estarão a salvo e não precisarão andar de mãos dadas. Ao menos assim, sem as mãos atadas, eles poderão correr quando a chuva chegar. E depois de tudo terá sempre um arco-íris.

Revolução do viaduto (segundo quadro de Paul Klee)


Por um grande acaso eu acordei durante aquela madrugada. A névoa baixa umedecia meu suspiro e me embaçava os olhos ainda sujos de lágrima; a brisa que entrava pela janela soprava na cortina e algumas vezes alcançava meu rosto. Talvez fizesse sol amanhã, pensei. Mas a música que tocava não me deixou mais dormir. Ainda bem, pois foi nesta noite que a cidade me revelou seu segredo.
Começou a amanhecer somente quando fui fechar a janela. A brisa ganhou um tom alaranjado que as vezes se avermelhava; era o nascer do sol que tentava com muito esforço empurrar a névoa para o alto e tomar conta da imensidão daquele céu.
Engraçado é que dava para ver um borrão avermelhado que se alastrava pela rua, mais ou menos na altura das casas, mas ele não tomava conta do céu, não subia mais que meus olhos; parecia que tudo acabava bem ali, em cima da minha cabeça. O resto ainda era todo cinza.
Só que as coisas começaram a mudar: a vermelhidão crescia sem perder o tom borrado. Não era a manhã que acordava, mas era o fogo que ardia em brasa. Quando saí às ruas com o intuito de fugir, foi que vi mais claramente o que ali acontecia. A lava escaldante que se desprendia da névoa acinzentada se condensava em formas geométricas, mais particularmente em arcos. Estavam distribuídos aleatoriamente e os tamanhos diversos não me deixavam dúvidas em relação ao que breve comigo aconteceria. Tentando escapar do mar de lava que invadia as ruas, os moradores correram... e não conseguiram; tornaram-se estátuas vivas e encandecentes. E porque suas pernas corriam é que pareciam arcos.
O calor não se aproximava, ao contrário, a brisa continuava a soprar e esfriar minha alma. Antes mesmo das coisas ficarem mais nítidas, a névoa cinza esfacelou-se. Por um instante tudo escureceu, os arcos bateram numa rápida retirada, voltando pelo mesmo caminho rasteiro de onde vieram. O vulcão engolia sua prole protegendo-a do fogo mais ardente que se lançaria.
Quando o primeiro raio de sol iluminou toda a imensidão é que pude ver, finalmente, que perdendo suas vidas e já sujos de concreto, os arcos se compunham ordenadamente num viaduto adiante. O segredo que a noite me contava tinha terminado bem ali, onde as almas se despem ao amanhecer e ninguém vê quem elas verdadeiramente são.