Meu avô


                Sempre achei que meu vô fosse imortal. Claro que sabia que isso era impossível, mas era assim que ele me parecia. Sempre dizendo volte logo, antes que eu morra! e eu achando a frase descabida, já que os cabelos brancos ainda não lhe impediam de calçar as mesmas botinas com elástico dos dois lados para ir varrer o chão de terra vermelha do pomar ou as folhas do meio-fio. Depois ele se deitava na rede da varanda, colocava a aba do boné em cima do olho e ficava lá, esperando o vento soprar as frutas no chão novamente. Quando não caiam logo, ia molhar as plantas com uma mangueira amarela suja e comprida que atravessava a grama como uma cobra caninana. Às vezes ele mostrava o dedo torto dele e, para não dizer que era artrose, dizia que o papagaio tinha arrancado um pedaço com o bico. A gente acreditava, assim como acreditava que era meio imortal.
                O papagaio, aliás, bem que podia mesmo ter arrancando um pedaço, pois só tinha olhos para meu irmão e para minha tia, apesar do miolo de pão molhado no café com leite que recebia toda santa manhã, fazia chuva ou sol, pelas mãos do meu avô, que ia arrastando a gaiola para fora como quem dizia que cafezinho é bom olhando pro mundo. Enquanto o loro comia o miolo, o vô bebia o café dele num copinho de vidro, não antes de colocar três colheres de açúcar bem grandes. Parecia um melaço. Para mim era a receita da imortalidade.
                À tarde, quando o sol mudava de lado, arrastava o loro mais pra lá, ligava o carro e punha-o mais pra cá, senão cai fruta em cima e fica todo sujo. Aproveitava e ficava dentro dele, com o rádio ligado, cantarolando umas modas de viola. Mas como o boné continuava na cabeça, não dava para saber se estava fingindo que cantava, que dormia ou que sonhava com ele dirigindo até o Japão. Uma vez me perguntou dá para ir de carro até a França? Se eu tivesse respondido sim com mais convicção, ele teria ido, ele, mais a minha vó e o papagaio. Às vezes, o mundo é difícil de explicar e de entender, mas se tem terras até lá, devia dar para ir de carro. Eu, que era a mais preta que as outras, de repente estava longe, tendo filhos e ainda tinha que explicar por que minhas filhas tinham um nome tão complicado como o mundo, e que, para compreender à sua maneira, chamava uma de Kiminduim e a outra de Yaminduim. Pouco importava se era uma ou a outra, eram as gramíneas dele.
                Quando na minha memória o conheci, tinha uma Variante branca e morava numa casa com uns pés de cana-de-açúcar no fundo. O carro e a casa me pareciam enormes. Eu e mais quatro primas cabíamos no banco de trás e tínhamos muito espaço para correr no corredor. Só mais tarde eu entendi que tamanhos podem ser proporcionais à nossa existência. Já o prazer do meu vô em dirigir era enorme, melhor até do que pão, mortadela e guaraná. Mil, dois mil ou vinte quilômetros era rapidinho. Soube, mais tarde, que meu vô, minha vó, meu tio e minha tia mudaram de casa umas sei lá quantas vezes. A gente se mudou de...para e depois de...para...Não, primeiro foi de...para e depois de para... de...não, não, primeiro teve aquela casa com o alpendre, depois aquela outra... Eu imaginando o vô fazendo tudo isso numa Variante, ou a cavalo, pois parece que naquela época o chão era de terra batida e ele trabalhava no lombo de um cavalo. Minha vó embalando tudo em caixas. Nem dava tempo de desembalar e bota tudo em caixa de novo. Eu nunca soube de onde vinha minha paixão por um pé na estrada, agora eu sei. Sei também que, além de imortal, ele sabia os caminhos do ir e vir como uma pessoa com deficiência visual sabe não esbarrar nos objetos da própria casa: sabia cada curva, cada subida e descida da estrada. Certa vez me aventurei numa viagem de oito horas com ele, minha vó, meu pai, um papagaio, uns quinze abacates, carne congelada, pão de forma, pano de prato, sapatos, cinco quilos de laranjas, sem falar das mudas de plantas, das roupas, de todo o resto que estava na geladeira. Se coubesse a geladeira, ela iria também. O vô com o boné branco, virando para a esquerda e para a direita, eu falando que podia dirigir, ele dizendo que já estávamos chegando e o papagaio quietinho. Quando, finalmente, me deixou pegar a direção já estávamos mesmo chegando, mas precisávamos comprar umas mexericas, umas bananas e enfiar sabe-se lá em qual canto do carro abarrotado.
Esse era o mundo dele. Algo que sempre foi fantástico para mim. Os bisnetos chegando, as frutas caindo no chão de terra, ele varrendo, dirigindo, escutando modas de viola. Sempre foi assim, por que haveria de não ser? Ou deixar de ser? As botinas estavam sempre lá, prontas na soleira da porta...
... Na verdade sempre estarão. Parte das botinas estão dentro de mim, parte das mortadelas, dos cabelos brancos, das modas de viola, da rede, do sorriso, da quentura nos pés, do melado de café e da paciência ao ver a folhas caindo pelo chão varrido e saber que pelo menos terá um amanhã. Para todos nós.