Carta de um colibri para um caramujo

 


Querido Polimita

Você anda carregando essa casa nas costas, toda cheia de livros, de memórias e mais uma tralha de coisas. Arrasta tudo cada vez que segue até a horta e arrasta outra vez para se esconder dos dias quentes.
A vida avança assim, num vai e vem e num vem e vai. Não sei como você dá conta de fazer duas coisas por dia.
Fico a.d.m.i.r.a.d.a.
Você ainda estava lá tirando o pó da memória (te vi sacudindo o paninho quando sobrevoei aquela montanha de lenhas que você insiste em chamar de abrigo. Te reconheci pelas cores) e eu já tinha tomado uns trinta cafés da manhã... Depois dizem que meu coração bate rápido por causa da paixão. Já tinha olhado o sol se levantar e lavado os pés na poça d'água entre a horta e teu abrigo. Aquela, que às vezes você para para ver teu reflexo nas margens e ajeita teus olhos alinhados em cima da cabeça, com medo que um dia desapareçam, que as coisas saiam de ordem. Nem sei se dá tempo de você ver no reflexo da água que eu passo ali, bem em cima, quando você volta da horta e ali pára novamente para escovar os dentes e verificar o lustre preto da tua pele. Um dia deixei cair uma pena, mas acho que ela saiu boiando na outra direção. Outra vez te deixei um buquê de flores, mas a toupeira comeu. Sei que não vivemos no mesmo mundo, embora vivamos no mesmo jardim, mas te achei tão bonito. Queria te dizer isso. De cima você é bonito. Só isso mesmo. Olhe para cima amanhã. Eu adoro as flores de sálvia."