Uma chave em Paris*



              Ela me mandou um SMS: Je pense à vous. Bisous. Com uma foto com vista para o Buttes Chaumont! Vous deve ser nós, eu e a bicicleta. A noite deve ter sido I-N-C-R-Í-V-E-L. Encontrou os amigos Chave de Casa, Chave do Carro, Chave da Moto , foram tomar sorvete na Île de la Cité, descobriram que abrem os cadeados dos Vélibs e da porta do 107, onde dançaram até as purpurinas escorrerem da pele molhada ao chão. No hotel, tomaram banho de banheira, beberam champagne sem abusar, para não perderem a linha. Riram com uma frenesia aguda, como o martelinho batendo na corda do piano. Daí encontraram o telefone jogado em cima do móvel e enviaram o SMS.
              A bicicleta?
             
             8h20 da manhã, eu e as filhas de carro até a escola e a mãe, da escola até em casa para deixar o carro, pegar a bicicleta emprestada e ir até a cidade ao lado devolvê-la.
              A bicicleta passou a noite na Rue Courre Commère. Quem acha que é por acaso que a rua tem esse nome está enganado. Era por onde corriam as comadres que não queriam virar essência de perfume! Como mais embaixo a rua afunila, faz uma curva de noventa graus e passa em um túnel, as comadres conseguiam escapulir mais rápido que a carroça, enroscando as rodas antes mesmo que o parfumeur colocasse os cavalos ao trote. Ou então, numa visão trágica, as comadres erguiam as saias até as canelas, deixando à mostra os tornozelos envoltos no laço das botinas de salto quadrado. Seguravam o chapéu com uma das mãos, a saia com a outra e corriam ruela abaixo. Entretanto, como o beco tinha chão de pedras, acabavam por tropicar antes da curva, deixando cair o chapéu, a barra da saia, tudo ia rodopiando e esvoaçando em premissas de perfume. O problema é que a bicicleta não podia correr. Então de duas uma: ou o parfumeur não passaria e a deixaria em paz ou ele passaria e eu não sentiria nem mais o cheiro da magrela.
              Fui pedalando até a cidade ao lado envolta nessa nuvem de pensamentos. Diminuí as rotações por minuto quando fui me aproximando da Courre Commère... Como se precisasse tapar os olhos com os dedos entreabertos diante da cena do crime. Parei a bicicleta emprestada, inclinei a cabeça na direção beco e... ela estava lá! Sã e salva, encostada no corrimão como um cachorro que espera por seu dono na frente da loja. Encontrou uma amiga, ficaram a noite conversando. Nem viram as horas girar!
              Respondi ao SMS da Chave no ato. Enviei, junto com as fotos que seguem, o seguinte: Chave, enquanto você faz de Paris uma festa, nós nos libertaremos, a rua Courre Commère será coisa do passado. Livres, não precisaremos mais de você. On pense à toi.
            
                Só resta solucionar o problema: como tirar-lhe a coleira?



* Obrigada Flávio Sampaio! :o)

Uélinton e o nariz

Uélinton e o nariz

Um tal de Uélinton vivia com sua mãe, seu pai e seus irmãos num quarto-sala para lá do Teatro Municipal, um pouco para lá das ruelas desconhecidas de São Paulo, com vista para o Anhangabaú. Moravam no centro de São Paulo, numa floresta de prédios que um dia foram arranha-céus e da qual o prefeito, Major Mória, insistia em tirar qualquer vida. Uélinton tinha oito anos e somente aos sete tinha saído dali pela primeira vez, quando seu tio o levara de metrô até a antena da Gazeta, na Avenida Paulista, para ver o Pico do Jaraguá de longe. Mesmo se a viagem durara apenas alguns minutos, Uélinton guardara em sua cabecinha um monte de lembranças emaranhadas: o barulho do metrô freando, o elevador — chegava-se ao o quarto-sala deles por uma infinita escada em caracol —, o vento, as árvores do Parque do Ibirapuera ao Sul e o Anhangabaú visto de cima.
A mãe de Uélinton era linda, mas doía-lhe de morar ali. Sofria com a poluição, com o barulho, com a falta de vida depois das dezoito horas e com a garoa, que deixava tudo cinza, vazio. Às vezes, quando o tio vinha fazer uma visita, levava Uélinton para a fonte do Anhangabaú. O menino pescava tampinhas plásticas com um anzol feito de alfinete e um fio que puxara da costura do único casaco que tinha. Depois ele colocava a pesca num vidro vazio de maionese, com um pouco de água, e levava tudo para casa. Punha o vidro no beiral da janela e ficava admirando aqueles peixes coloridos. Outras vezes levava as migalhas de bolacha para embaixo da ponte, onde passava a tarde alimentando uns roedores bonitos, como os gatos persas que via na televisão. Teve um dia em que o bicho pulou para morder sua mão e se não fosse o irmão Dito, Uélinton teria pedido o dedo mindinho.
O pai de Uélinton trabalhava no terminal de ônibus. Vendia balas chita. Voltava tarde para o quarto-sala, alisava o cabelo negro da mulher — que cacheava tão logo as mãos chegava às pontas — e dava os restos ao menino, que alimentava os peixes, deixando o vidro de maionese ainda mais colorido.
Um dia, o pai voltou com uns sanduíches de pão francês. Naquela mesma noite, a televisão falou sobre um incidente que o Major Mória sofrera no Pátio do Colégio, quando fazia-se de gari para melhor entender os problemas da cidade. O Major perdera o nariz numa confusão entre ambulantes, garis, falsos-garis e os fotógrafos da imprensa. Estavam comendo os sanduíches na frente no noticiário, quando Uélinton, faminto, se engasgou pra valer. Ele achou que fosse morrer. A mãe, desesperada, sacudiu o menino, deu-lhes uns tapas nas costas e o objeto que provocara o engasgo foi cuspido em cima do prato: o nariz! O nariz do Major Mória! As buzinas da rua abafaram os gritos de Drelina, Tomezinho e Chica. Só o pai e mãe permaneceram mudos.
Mandaram as crianças para cama e os pais ficaram na sala, a pensar numa solução. Antes de fechar a porta do quarto, Uélinton sugeriu dar o nariz aos peixes ou aos roedores da ponte, mas os pais decidiram que o melhor seria chamar o médico do SUS, que trabalhava na Praça da Sé. Para fazê-lo, era preciso marcar uma consulta com o doutor. À secretária, a mãe alegou que Uélinton sentia dores no peito, na cabeça e tinha alucinações “uma jiboia entrou no quarto-sala do vizinho e quase engoliu pela metade o meninozinho”, ela frisou. Mas a espera no SUS era cada vez mais longa e acabaram marcando a consulta para o dia 13 de maio de 2018, exatos um ano e treze dias mais tarde.
Seis meses depois, numa briga no terminal, o pai matou Luisaltino — vendedor de bilhete único — com um soco que fez o homem esborrachar a cabeça contra a calçada. O pai, num ímpeto de pânico entre a morte de Luisaltino e a história do nariz, achou que a polícia fosse realmente colocá-lo atrás das grades e antes que a ideia virasse verdade, pulou da ponte de pedestres e foi atropelado pelo Paulista-Santana. O pai ainda estava esperando o enterro e a mãe pedindo “Uélinton, reza e dorme meu filho!”. Ele rezou olhando para os peixes e dormiu. Foi-se o enterro, foram-se as rezas e os peixes não tinham mais do que comer.
Quando finalmente chegou a hora da consulta com o médico, Uélinton soube que precisaria usar óculos, como a moça da televisão. Não tiveram coragem de falar sobre o nariz. Voltaram para casa, Uélinton com os novos olhos. Aquele vale nunca tinha sido tão feio, tão cinza e tão vazio. Despejou o pote de maionese na privada e deu descarga. Jogou o nariz congelado pela janela. Tirou os óculos, olhou a bruma e rezou.
No dia seguinte o Major Mória encontraria seu nariz jogado na sarjeta.

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Inicialmente escrito e publicado para o curso de Ronaldo Bressane no MAM
(contosdomam.wordpress.com)

O arrancador de ervas daninhas

O arrancador de ervas daninhas

Vaga de emprego que máquina nenhuma pode fazer. Disponibilidade? Imediata. Experiência? Nenhuma. Resistência à intempéries? Saúde de ferro. Foi, trabalhou e guardou duas lembranças. A melhor foi o primeiro carimbo da carteira de trabalho que dizia: Arrancador de ervas daninhas em restinga.
As capinas de restinga serviam para eliminar as plantas daninhas que provocavam o abafamento ou a excessiva competição. Ele começou sapiens: puxava as gramíneas pelos cabelos. Depois virou neanderthalensis e arrancava os pés das epífitas. Quando foi erectus tirou camadas e camadas de cebolas da praia. Habilis, picotou cactáceos com os dentes  e por fim, afarensis, deitou.
Estatelado na praia, o arrancador de ervas daninhas sentiu os tantos grãos de areia em suas costas como se fossem estrelas brotando no céu. Cada ponta doía nos poros. Ouviu as plantas carnívoras comerem os pernilongos. Visto que o substrato tinha boa estrutura e consistência, os insetos não comidos acabaram por arrancar-lhe o sangue aos canudinhos.
A areia soprava num chicote. As mãos do homem procuravam os últimos brotos de erva daninha da restinga. A raiva escondida dentro de si manifestava-se em cabelos espichados em alga nori e a pele crostinhenta como queijo-coalho assado.
O arrancador de ervas daninhas da restinga desenraizou, junto com a raiva, as últimas seivas de força. Rastejou até a estrada. Enlaçou as mãos na maçaneta da porta do carro, mas faltaram-lhe água e sapiência. Plantou-se ali.
Choveu em cascata. As gotas formaram poros na areia. Ela regou tudo. Desabrochou o homem aferensis em habilis, em erectus, em neanderthalensis e, por fim, em sapiens. Só então ele pode subir pela estrada da Graciosa.
Quando o arrancador de ervas daninhas pôs-se em frente a seu empregador, o patrão teve medo. Sapiens arrancou então a raiva escondida no peito, um livro da estante e um grito. Quis extirpar o engravatado. Quis suprimi-lo. Cortar o mau pela raiz. Mas só conseguiu golpeá-lo na cabeça com um grande Copo de Cólera. E o patrão morreu.

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Incialmente escrito e publicado para o curso do Ronaldo Bressane no MAM
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A lâmpada, a caixa e o Uaná

A lâmpada, a caixa e o Uaná

Assim que o homem colocou o dedo no botão, soube que algo novo estava por clarear. Duas semanas antes ele recebera — de um mensageiro em canoa — uma caixa “contendo uma lâmpada ligada à um fio e o fio ligado a um interruptor”. Teve de esperar mais uma semana até que, como uma cobra-cipó, um outro homem numa canoa gigante puxasse um outro fio mais largo e mais comprido através da floresta, do rio e da gaiola dos tatus. Seguindo as instruções, Uaná emendou o fio mais largo no interruptor e esperou. Esperou, olhando para o contorno ainda visível das árvores para além do rio que o faziam pensar numa onça empoleirada em uma apuí. Acendeu o cachimbo e aguardou que os olhos da bichinha apagassem. Então o céu empretejou. Uaná deslizou as mãos pelo fio, apertou o botão e a luz acordou: lânguida, ruiva, pulsando como o piscar da danada embrenhada no mato. O homem deu um pulo para trás, assustado com a imagem. O movimento provocou um leve balançar daqueles olhos em busca do melhor ângulo para atacar. Nem mesmo as muriçocas vieram espiar. Era preciso amansá-la. Fitou o luzeiro e pronunciou algumas palavras entre os dentes. Aos poucos, o titubear dos dois calmou num enorme pesar.
Uaná correu buscar uma caixinha feita de madeira da piranheira. A tampa, esculpida com uma alça, servia de batuque. O bate-bate da tampa na caixinha cantava mais bonito que um uirapuru. Para fazê-la cantar como o pássaro era preciso aprender, ainda menino, a ver a árvore no meio do mato, a cortar o galho certo, a esculpi-lo com uma faca afiada. E para aprender tudo isso era preciso ter um pai e o pai um pai que também deveria ter um pai. Uaná tinha tido todos esses pais. Assim que terminara de trabalhar a madeira, o menino agachou ao lado da água do rio e bateu, bateu até a lua murchar. Quando ela murchou o uirapuru respondeu, e respondia assim todas as noites, mesmo quando correu para buscar a caixinha. Voltou faceiro, distraiu o bichano com a música e acaixanhou o lume. Amarrou tudo com um ramo de mariri e foi dormir abraçado no vai e vem da rede. Cada noite ele revia o mensageiro na piroga e a cobra-cipó que trouxera-lhe aquela onça das outras terras, do lado de lá da gaiola dos tatus, do rio e da floresta. Mas ele não queria jogá-la no rio.
Um dia, um homem estranho chegou voando num grande ninho de xexéu. A boca do ninho também ficava voltada para o chão, mas embaixo da boca havia um cesto que “devia servir para segurar o passarinho que não soubesse voar”. Colocá-lo no céu era fácil: o homem soprava fogo na boca e o ninho voava com as labaredas. Uaná não teve medo do homem, ficou mesmo é curioso. “Talvez fosse o Pai dos xexéus”, pensou e deu para ele a caixa de presente, pois sabia que xexéu quando grita espanta até macaco-prego dos arredores da árvore. Talvez pudesse sumir com a onça acaixanhada. O homem foi embora num começo de noite sem luar. Partiu voando no ninho, carregando a caixinha de madeira. Uaná ficou olhando da beira do rio. Então lá do contorno das árvores viu o homem abrir a caixa. Dela brotaram mil lampejos pirilampando por cima da floresta. Uaná não sabia, mas naquela noite a onça dera a luz aos vaga-lumes.

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Escrito e inicialmente publicado para o curso de Ronaldo Bressane no MAM
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O PRESENTE

O presente

O porquinho-da-índia está no meu bolso, não se preocupe.
Não há nada além do papel deste banheiro para escrever algumas palavras. Tudo esbraseia. Quero lhe entregar uma bandeja com um croissant, uma taça de café e um porquinho-da-índia escondido embaixo de uma cumbuca. Estico a cordinha da descarga, turbilhonando a água.
O porquinho-da-índia está no meu bolso, não se preocupe.
Os gritos, o alarme, a correria e a fumaça. O banheiro é um bom lugar. Há de ser o melhor, mas a única escapatória escorre num redemoinho.
Lembra-se quando andava a sonhar com o bicho? A gaiola estava no corredor, embalada com um laço de fita,
Não se preocupe, o porquinho-da-índia está no meu bolso.
você carregava sempre a história para debaixo dos lençóis, eu adorava. Não levei a bandeja por achar o gesto vulgar e para não incomodar seus olhos num sonho profundo — você permaneceu em silêncio e havia de continuar assim —, ela ficou em cima da pia e a cumbuca com os restos de Corn Flakes, espero que não tenha se importado,
No meu bolso está o porquinho-da-índia, já disse para não se preocupar.
Gritar e correr, como faz o bicho das suas fantasias quando lhe falta do que comer. A água remoinha mais devagar, não tenho para aonde escapar. Escrevo-lhe depressa para que saiba que mesmo se tudo queimar, queria lhe presentear com o porquinho dentro da cumbuca. Não resisti, enfiei o bicho no bolso para entregá-lo quando o sol cessasse de atear. A ideia era melhor que qualquer palavra que eu pudesse sussurrar ao seu ouvido. Nem o café era mais saboroso. Só o seu sorriso nos meus olhos…
Para lá da porta do banheiro as palavras ardem. A fumaça invade. Olho para baixo, a água para de rodopiar. Tudo parece mais calmo. Já disse para não se preocupar. Tiro o porquinho-da-índia do meu bolso, num último gesto sobre tudo aquilo que gostaria de lhe falar — Te amei. Um beijo. — e puxo a cordinha da descarga novamente.

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Escrito e publicado para o curso de Ronaldo Bressane no MAM
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QUEM VAI TEM DE VOLTAR


QUEM VAI TEM DE VOLTAR

Outro dia me faltou um ovo no meio de uma receita de bolo de laranja. Se fosse lá na Vila Sônia, teria batido na porta da vizinha e pedido um emprestado. Como não há nada de Vila Sônia nessa paisagem bucólica de interior francês, tive de ir até a cidade. Cidade é um modo de dizer — assim diria um mineiro para exprimir quando vai ao centro, deixando bem claro que fora dele tudo é roça —, só tem uma quitanda chinfrim que abre das dez ao meio-dia, das quinze às dezoito e fecha às segundas e aos sábados à tarde. Eram duas horas. Já que o bolo ia desandar, decidi descer a pé até a cidade, apesar da espécie de malemolência que tomou meu ânimo assim que pensei na subida que teria de pegar na volta. Tudo isso por causa de um ovo que um bom vizinho teria me emprestado. Aqui, emprestado é emprestado mesmo. Teria que devolvê-lo, e com juros. Assim fui eu em busca do ovo.
Na curva, lá embaixo, um pássaro piou dizuí dizuí para me chamar a atenção. Desviei o olhar para tentar ver as plumagens, dentro dum oco atrás das folhagens só pude ver que não era uma arara, nem podia ser. Foi então que, no final da curva, dei de cara com a Senhora  empunhando o carrinho de compras caminho acima. Sorri e disse:
Bonjour Madame! — embora para mim fosse Senhora. Sim, o nome, a idade, o jeito de vestir dela: tudo era Senhora. Chamá-la de Madame me dava vontade de rir. Madame soava como pano velho de chita engomado. Já Senhora tem um lado chique de quem deambula como se a mente flutuasse dentro de um balão de hélio amarrado à cabeça por um fio de pesca.
Bonjour Mademoseill… — respondeu, engolindo o e por causa da canseira em puxar o carrinho caminho acima. — Como está você?
A Senhora morava antes da curva para quem estava descendo, mas não era uma vizinha. Fiquei com pena, peguei o carrinho e retribui:
— Muito bem Madame, obrigada. Ia descer até a cidade para comprar uns ovos e terminar um bolo, mas ele pode esperar. Vou acompanhá-la. — tinha a esperança que me ofereceria os ovos, daí eu não precisaria ir até a quitanda. Deixei a Senhora na entrada da casa, ela não disse nada sobre os ovos, agradeceu com um merci Mademoseill e fechou a porta.
E assim eu voltei pelo caminho em busca do ovo.
Quase na rua principal, perto da nogueira em guarda-chuva, vi raiar o sol atrás das nuvens empurradas pelo vento do Sul em sinal de aguaceiro. Bem abrigado sob a copa da árvore, Louis colhia as nozes do chão como uma galinha pinicando a terra: ele precisava rapar as botas para afastar as folhas antes de encontrar as bolotas de cor marrom. Estava a pinicar e botar uma a uma no cesto quando percebeu que a trama de junco tinha um furo. Um verdadeiro papo furado. Quando me viu, acenou e gritou:
— Ei, você pode me ajudar a colocar o saco em cima da bicicleta? Ele está rasgado…
Louis, além de vender nozes na feira aos sábados de manhã, trabalhava como policial municipal: postava-se três vezes por dia na porta da escola e ajudava os alunos a atravessarem a rua. Tinha medo que as crianças quebrassem os ossos por causa de algum maluco que passasse correndo de carro por ali. “O ovo Louis, meu ovo. O bolo Louis, meu bolo.” E respondi:
— Bom dia Louis. Eu tinha que ir lá na quitanda… enfim… preciso de ovos… Você tem certeza que não vai perder as nozes no meio do caminho? — e quando vi já estava puxando o papo. Louis agradeceu e foi embora pedalando a magrela. Algumas nozes caíram do saco, marcando o caminho de João.
Poucos minutos depois, cheguei na quitanda que cheirava a anilina. A dona, esfregando o azulejo, reclamou:
— A geladeira quebrou, eu só me dei conta agorinha, quando o cheiro pegou às narinas!
— E os ovos, Laura?
— Tive de jogá-los no lixo…
Quem vai tem de voltar. Forno sem bolo, bolo sem ovo. A chuva começando a pingar.
Na varanda havia dois potinhos: um com um punhado de nozes e o outro com cinco ovos e um bilhetinho dizendo Mademoseille, obrigada. Tua vizinha.
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Escrito e inicialmente publicado no blog do Ronaldo Bressane, para um curso no MAM (contosdomam.wordpress.com)