O presente
Não há nada além do papel deste banheiro para escrever algumas palavras. Tudo esbraseia. Quero lhe entregar uma bandeja com um croissant, uma taça de café e um porquinho-da-índia escondido embaixo de uma cumbuca. Estico a cordinha da descarga, turbilhonando a água.
O porquinho-da-índia está no meu bolso, não se preocupe.
Os gritos, o alarme, a correria e a fumaça. O banheiro é um bom lugar. Há de ser o melhor, mas a única escapatória escorre num redemoinho.
Lembra-se quando andava a sonhar com o bicho? A gaiola estava no corredor, embalada com um laço de fita,
Não se preocupe, o porquinho-da-índia está no meu bolso.
você carregava sempre a história para debaixo dos lençóis, eu adorava. Não levei a bandeja por achar o gesto vulgar e para não incomodar seus olhos num sonho profundo — você permaneceu em silêncio e havia de continuar assim —, ela ficou em cima da pia e a cumbuca com os restos de Corn Flakes, espero que não tenha se importado,
No meu bolso está o porquinho-da-índia, já disse para não se preocupar.
Gritar e correr, como faz o bicho das suas fantasias quando lhe falta do que comer. A água remoinha mais devagar, não tenho para aonde escapar. Escrevo-lhe depressa para que saiba que mesmo se tudo queimar, queria lhe presentear com o porquinho dentro da cumbuca. Não resisti, enfiei o bicho no bolso para entregá-lo quando o sol cessasse de atear. A ideia era melhor que qualquer palavra que eu pudesse sussurrar ao seu ouvido. Nem o café era mais saboroso. Só o seu sorriso nos meus olhos…
Para lá da porta do banheiro as palavras ardem. A fumaça invade. Olho para baixo, a água para de rodopiar. Tudo parece mais calmo. Já disse para não se preocupar. Tiro o porquinho-da-índia do meu bolso, num último gesto sobre tudo aquilo que gostaria de lhe falar — Te amei. Um beijo. — e puxo a cordinha da descarga novamente.
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Escrito e publicado para o curso de Ronaldo Bressane no MAM
(contosdomam.wordpress.com)