A lâmpada, a caixa e o Uaná

A lâmpada, a caixa e o Uaná

Assim que o homem colocou o dedo no botão, soube que algo novo estava por clarear. Duas semanas antes ele recebera — de um mensageiro em canoa — uma caixa “contendo uma lâmpada ligada à um fio e o fio ligado a um interruptor”. Teve de esperar mais uma semana até que, como uma cobra-cipó, um outro homem numa canoa gigante puxasse um outro fio mais largo e mais comprido através da floresta, do rio e da gaiola dos tatus. Seguindo as instruções, Uaná emendou o fio mais largo no interruptor e esperou. Esperou, olhando para o contorno ainda visível das árvores para além do rio que o faziam pensar numa onça empoleirada em uma apuí. Acendeu o cachimbo e aguardou que os olhos da bichinha apagassem. Então o céu empretejou. Uaná deslizou as mãos pelo fio, apertou o botão e a luz acordou: lânguida, ruiva, pulsando como o piscar da danada embrenhada no mato. O homem deu um pulo para trás, assustado com a imagem. O movimento provocou um leve balançar daqueles olhos em busca do melhor ângulo para atacar. Nem mesmo as muriçocas vieram espiar. Era preciso amansá-la. Fitou o luzeiro e pronunciou algumas palavras entre os dentes. Aos poucos, o titubear dos dois calmou num enorme pesar.
Uaná correu buscar uma caixinha feita de madeira da piranheira. A tampa, esculpida com uma alça, servia de batuque. O bate-bate da tampa na caixinha cantava mais bonito que um uirapuru. Para fazê-la cantar como o pássaro era preciso aprender, ainda menino, a ver a árvore no meio do mato, a cortar o galho certo, a esculpi-lo com uma faca afiada. E para aprender tudo isso era preciso ter um pai e o pai um pai que também deveria ter um pai. Uaná tinha tido todos esses pais. Assim que terminara de trabalhar a madeira, o menino agachou ao lado da água do rio e bateu, bateu até a lua murchar. Quando ela murchou o uirapuru respondeu, e respondia assim todas as noites, mesmo quando correu para buscar a caixinha. Voltou faceiro, distraiu o bichano com a música e acaixanhou o lume. Amarrou tudo com um ramo de mariri e foi dormir abraçado no vai e vem da rede. Cada noite ele revia o mensageiro na piroga e a cobra-cipó que trouxera-lhe aquela onça das outras terras, do lado de lá da gaiola dos tatus, do rio e da floresta. Mas ele não queria jogá-la no rio.
Um dia, um homem estranho chegou voando num grande ninho de xexéu. A boca do ninho também ficava voltada para o chão, mas embaixo da boca havia um cesto que “devia servir para segurar o passarinho que não soubesse voar”. Colocá-lo no céu era fácil: o homem soprava fogo na boca e o ninho voava com as labaredas. Uaná não teve medo do homem, ficou mesmo é curioso. “Talvez fosse o Pai dos xexéus”, pensou e deu para ele a caixa de presente, pois sabia que xexéu quando grita espanta até macaco-prego dos arredores da árvore. Talvez pudesse sumir com a onça acaixanhada. O homem foi embora num começo de noite sem luar. Partiu voando no ninho, carregando a caixinha de madeira. Uaná ficou olhando da beira do rio. Então lá do contorno das árvores viu o homem abrir a caixa. Dela brotaram mil lampejos pirilampando por cima da floresta. Uaná não sabia, mas naquela noite a onça dera a luz aos vaga-lumes.

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Escrito e inicialmente publicado para o curso de Ronaldo Bressane no MAM
(contosdomam.wordpress.com)