Para os Guarani-Caiowás


A gaivota fez fiiiiu. Eu olhei pra cima, mas por causa do vento frio e do sol no céu azul, não consegui vê-la. Acho que queria dizer algo. Mas o que são palavras? Era nisso que estava pensando dentro do ônibus, enquanto ele, rodando, fazia as folhas amareladas voarem pelo chão. Era nisto que estava pensando quando tomei consciência que meus estudos de filosofia me levam hoje, quase que instintivamente, a pensar na existência do mundo...na existência humana. Foi dentro deste ônibus que me trazia de volta de Wendake que as palavras dessa existência me soaram estranhas. Não só pelo sotaque desconhecido aos meus ouvidos, mas pela história transmitida pelas palavras.

Wendake é um vilarejo perto de Québec onde moram parte dos últimos remanescentes do povo Hurons-Wendat, povo indígena que habitou até o século 17 em terras junto ao lago Huron, nas proximidades de Detroid. Primeiro foram os franceses que estabeleceram contato com o povo Huron, catequizando-os e transmitindo as primeiras doenças. Depois os ingleses, que com suas armas de fogo comercializadas junto ao povo Iroqueses, realçaram os conflitos existentes entre Hurons e Iroqueses, contribuindo com a quase extinção do povo Huron-Wendat. Os cerca de 300 sobreviventes (de mais de 30 000) se viram obrigados a abandonar suas terras para procurar a paz nas proximidades da atual Québec.

Antes do ônibus, antes da gaivota, mas não antes das folhas, uma Huron-Wendat conta com suas palavras como hoje esse povo agradece aos jesuítas franceses suas sobrevivência. Loira de olhos claros e sotaque québequois, ela relata como a miscigenação contribuiu com a perda da cor jambo da pele e como ganharam a oportunidade em encontrar trabalho na cidade de Québec.

Nas suas palavras não encontro mais traços indígenas. Nem mesmo no bom dia ou até logo falados em língua Wendat. Mas a sorte com que descreve a trajetória do seu povo não é a mesma que suas palavras desenham a sorte de outros dez povos indígenas morando no estado de Québec: longe da capital e das grandes cidades esses outros povos sofrem da fome, do problema de alcoolismo e de uma taxa de suicídio 13% superior ao da capital canadense.

O grito da gaivota me leva longe daqui, perto de onde vim, junto aos índios Guarani-Caiowás, que numa tentativa desesperada para serem ouvidos, gritam como uma gaivota no céu, inaudível quando as folhas caem no chão, quando os ônibus rodopiam pelas avenidas, invisível quando o sol brilha demais e o vento frio vagueia entre as nuvens. É Eliane Brum, o que são palavras?

Hoje no ônibus me dei conta que palavras são gaivotas no céu: um grito agudo que exprime sua própria existência. Que essa existência não passe desapercebida só porque o sol brilha lá no alto desse céu frio e azul. Eu ouvi, mesmo de longe, ouvi...e respondi, mesmo se minhas palavras não falam gaivota, Wendat ou Guarani.