QUEM VAI TEM DE VOLTAR


QUEM VAI TEM DE VOLTAR

Outro dia me faltou um ovo no meio de uma receita de bolo de laranja. Se fosse lá na Vila Sônia, teria batido na porta da vizinha e pedido um emprestado. Como não há nada de Vila Sônia nessa paisagem bucólica de interior francês, tive de ir até a cidade. Cidade é um modo de dizer — assim diria um mineiro para exprimir quando vai ao centro, deixando bem claro que fora dele tudo é roça —, só tem uma quitanda chinfrim que abre das dez ao meio-dia, das quinze às dezoito e fecha às segundas e aos sábados à tarde. Eram duas horas. Já que o bolo ia desandar, decidi descer a pé até a cidade, apesar da espécie de malemolência que tomou meu ânimo assim que pensei na subida que teria de pegar na volta. Tudo isso por causa de um ovo que um bom vizinho teria me emprestado. Aqui, emprestado é emprestado mesmo. Teria que devolvê-lo, e com juros. Assim fui eu em busca do ovo.
Na curva, lá embaixo, um pássaro piou dizuí dizuí para me chamar a atenção. Desviei o olhar para tentar ver as plumagens, dentro dum oco atrás das folhagens só pude ver que não era uma arara, nem podia ser. Foi então que, no final da curva, dei de cara com a Senhora  empunhando o carrinho de compras caminho acima. Sorri e disse:
Bonjour Madame! — embora para mim fosse Senhora. Sim, o nome, a idade, o jeito de vestir dela: tudo era Senhora. Chamá-la de Madame me dava vontade de rir. Madame soava como pano velho de chita engomado. Já Senhora tem um lado chique de quem deambula como se a mente flutuasse dentro de um balão de hélio amarrado à cabeça por um fio de pesca.
Bonjour Mademoseill… — respondeu, engolindo o e por causa da canseira em puxar o carrinho caminho acima. — Como está você?
A Senhora morava antes da curva para quem estava descendo, mas não era uma vizinha. Fiquei com pena, peguei o carrinho e retribui:
— Muito bem Madame, obrigada. Ia descer até a cidade para comprar uns ovos e terminar um bolo, mas ele pode esperar. Vou acompanhá-la. — tinha a esperança que me ofereceria os ovos, daí eu não precisaria ir até a quitanda. Deixei a Senhora na entrada da casa, ela não disse nada sobre os ovos, agradeceu com um merci Mademoseill e fechou a porta.
E assim eu voltei pelo caminho em busca do ovo.
Quase na rua principal, perto da nogueira em guarda-chuva, vi raiar o sol atrás das nuvens empurradas pelo vento do Sul em sinal de aguaceiro. Bem abrigado sob a copa da árvore, Louis colhia as nozes do chão como uma galinha pinicando a terra: ele precisava rapar as botas para afastar as folhas antes de encontrar as bolotas de cor marrom. Estava a pinicar e botar uma a uma no cesto quando percebeu que a trama de junco tinha um furo. Um verdadeiro papo furado. Quando me viu, acenou e gritou:
— Ei, você pode me ajudar a colocar o saco em cima da bicicleta? Ele está rasgado…
Louis, além de vender nozes na feira aos sábados de manhã, trabalhava como policial municipal: postava-se três vezes por dia na porta da escola e ajudava os alunos a atravessarem a rua. Tinha medo que as crianças quebrassem os ossos por causa de algum maluco que passasse correndo de carro por ali. “O ovo Louis, meu ovo. O bolo Louis, meu bolo.” E respondi:
— Bom dia Louis. Eu tinha que ir lá na quitanda… enfim… preciso de ovos… Você tem certeza que não vai perder as nozes no meio do caminho? — e quando vi já estava puxando o papo. Louis agradeceu e foi embora pedalando a magrela. Algumas nozes caíram do saco, marcando o caminho de João.
Poucos minutos depois, cheguei na quitanda que cheirava a anilina. A dona, esfregando o azulejo, reclamou:
— A geladeira quebrou, eu só me dei conta agorinha, quando o cheiro pegou às narinas!
— E os ovos, Laura?
— Tive de jogá-los no lixo…
Quem vai tem de voltar. Forno sem bolo, bolo sem ovo. A chuva começando a pingar.
Na varanda havia dois potinhos: um com um punhado de nozes e o outro com cinco ovos e um bilhetinho dizendo Mademoseille, obrigada. Tua vizinha.
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Escrito e inicialmente publicado no blog do Ronaldo Bressane, para um curso no MAM (contosdomam.wordpress.com)