Uélinton e o nariz
Um tal de Uélinton vivia com sua mãe, seu pai e
seus irmãos num quarto-sala para lá do Teatro Municipal, um pouco para
lá das ruelas desconhecidas de São Paulo, com vista para o Anhangabaú.
Moravam no centro de São Paulo, numa floresta de prédios que um dia
foram arranha-céus e da qual o prefeito, Major Mória, insistia em tirar
qualquer vida. Uélinton tinha oito anos e somente aos sete tinha saído
dali pela primeira vez, quando seu tio o levara de metrô até a antena da
Gazeta, na Avenida Paulista, para ver o Pico do Jaraguá de longe. Mesmo
se a viagem durara apenas alguns minutos, Uélinton guardara em sua
cabecinha um monte de lembranças emaranhadas: o barulho do metrô
freando, o elevador — chegava-se ao o quarto-sala deles por uma infinita
escada em caracol —, o vento, as árvores do Parque do Ibirapuera ao Sul
e o Anhangabaú visto de cima.
A mãe de Uélinton era linda, mas doía-lhe de morar
ali. Sofria com a poluição, com o barulho, com a falta de vida depois
das dezoito horas e com a garoa, que deixava tudo cinza, vazio. Às
vezes, quando o tio vinha fazer uma visita, levava Uélinton para a fonte
do Anhangabaú. O menino pescava tampinhas plásticas com um anzol feito
de alfinete e um fio que puxara da costura do único casaco que tinha.
Depois ele colocava a pesca num vidro vazio de maionese, com um pouco de
água, e levava tudo para casa. Punha o vidro no beiral da janela e
ficava admirando aqueles peixes coloridos. Outras vezes levava as
migalhas de bolacha para embaixo da ponte, onde passava a tarde
alimentando uns roedores bonitos, como os gatos persas que via na
televisão. Teve um dia em que o bicho pulou para morder sua mão e se não
fosse o irmão Dito, Uélinton teria pedido o dedo mindinho.
O pai de Uélinton trabalhava no terminal de ônibus.
Vendia balas chita. Voltava tarde para o quarto-sala, alisava o cabelo
negro da mulher — que cacheava tão logo as mãos chegava às pontas — e
dava os restos ao menino, que alimentava os peixes, deixando o vidro de
maionese ainda mais colorido.
Um dia, o pai voltou com uns sanduíches de pão
francês. Naquela mesma noite, a televisão falou sobre um incidente que o
Major Mória sofrera no Pátio do Colégio, quando fazia-se de gari para
melhor entender os problemas da cidade. O Major perdera o nariz numa
confusão entre ambulantes, garis, falsos-garis e os fotógrafos da
imprensa. Estavam comendo os sanduíches na frente no noticiário, quando
Uélinton, faminto, se engasgou pra valer. Ele achou que fosse morrer. A
mãe, desesperada, sacudiu o menino, deu-lhes uns tapas nas costas e o
objeto que provocara o engasgo foi cuspido em cima do prato: o nariz! O
nariz do Major Mória! As buzinas da rua abafaram os gritos de Drelina,
Tomezinho e Chica. Só o pai e mãe permaneceram mudos.
Mandaram as crianças para cama e os pais ficaram na
sala, a pensar numa solução. Antes de fechar a porta do quarto, Uélinton
sugeriu dar o nariz aos peixes ou aos roedores da ponte, mas os pais
decidiram que o melhor seria chamar o médico do SUS, que trabalhava na
Praça da Sé. Para fazê-lo, era preciso marcar uma consulta com o doutor.
À secretária, a mãe alegou que Uélinton sentia dores no peito, na
cabeça e tinha alucinações “uma jiboia entrou no quarto-sala do vizinho e
quase engoliu pela metade o meninozinho”, ela frisou. Mas a espera no
SUS era cada vez mais longa e acabaram marcando a consulta para o dia 13
de maio de 2018, exatos um ano e treze dias mais tarde.
Seis meses depois, numa briga no terminal, o pai
matou Luisaltino — vendedor de bilhete único — com um soco que fez o
homem esborrachar a cabeça contra a calçada. O pai, num ímpeto de pânico
entre a morte de Luisaltino e a história do nariz, achou que a polícia
fosse realmente colocá-lo atrás das grades e antes que a ideia virasse
verdade, pulou da ponte de pedestres e foi atropelado pelo
Paulista-Santana. O pai ainda estava esperando o enterro e a mãe pedindo
“Uélinton, reza e dorme meu filho!”. Ele rezou olhando para os peixes e
dormiu. Foi-se o enterro, foram-se as rezas e os peixes não tinham mais
do que comer.
Quando finalmente chegou a hora da consulta com o
médico, Uélinton soube que precisaria usar óculos, como a moça da
televisão. Não tiveram coragem de falar sobre o nariz. Voltaram para
casa, Uélinton com os novos olhos. Aquele vale nunca tinha sido tão
feio, tão cinza e tão vazio. Despejou o pote de maionese na privada e
deu descarga. Jogou o nariz congelado pela janela. Tirou os óculos,
olhou a bruma e rezou.
No dia seguinte o Major Mória encontraria seu nariz jogado na sarjeta.
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Inicialmente escrito e publicado para o curso de Ronaldo Bressane no MAM
(contosdomam.wordpress.com)