AVENTURA DE UM VIAJANTE


(lembranças da época que Ronaldo Bressane ainda corrigia meus escritos. E hoje, quem pode me socorrer hein?)

Estava partindo quando cheguei. O trem estava previsto para sair cedo, mas nem tanto. Deu tempo de correr e, por pouco, pegá-lo. Atrás de mim a porta se fechou. Com a mala na mão passei o olhar no vagão procurando um lugar para sentar: aquela senhora me parecia muito suja, suas mãos repletas de rachaduras... Me dava asco! Resolvi por sentar num banco vazio um pouco atrás desta figura, colocando a mala sobre meus pés.
Lá fora chovia, o vidro embaçado atrapalhava minha visão, mas não dei importância, logo chegava numa estação. No trem entrou um homem de vestimenta arrumada: usava sobretudo preto e cachecol, sua beleza me chamara a atenção. Por um momento ele ficou admirando o vagão e depois se sentou bem ao lado daquela senhora nojenta!
Matutava comigo mesma “por que não sentara ao meu lado? Devia ser mais agradável. Quem sabe ele não tivesse me visto! Ainda estaria em tempo de mudar de banco...” Mas um senhor rechonchudo sentou ao meu lado; não que ele me apertasse, e quase num ato instintivo me espremi ao lado da janela. Diferente da mulher, suas mãos não eram gastas e ele não me dava asco! pelo contrário, suas linhas curvas me atraíam e eu sentia vontade de tocá-las, talvez fossem como grandes gelatinas. E além de tudo devia ser muito diferente do belo homem de sobretudo, pois não havia se incomodado em sentar ao meu lado.
Não conseguia tirar os olhos daquela perna coberta por uma calça xadrez de um tecido muito bonito, minhas mãos queriam aproximar e meu corpo agia incontrolavelmente. Com tal sentimento minha cabeça bolava como sempre planos mirabolantes...
“Se eu colocar minhas mãos sobre sua perna e der um apertão? Acho melhor não, talvez ele comece a gritar ou suas mãos pesadas venham esbofetear minha magra aparência! Seria vergonhoso.” Estava me acalmando e prestando atenção na chuva quando tive a impressão de que o senhor obeso me olhava; sentia sua respiração bem próxima ao meu ouvido, seu calor æ apesar de não fazer sol ele suava æ me esquentava e fazia embaçar ainda mais o vidro; continuei olhando para fora.
Agora eu fingia dormir e deixava que minha mão æ no tremeliço do trem æ caísse sobre suas pernas: me sentia feliz, mas não era o que desejava.
O homem de sobretudo levantou-se, deu mais uma olhada no vagão (continuou não me vendo), arrumou o cachecol e desceu na próxima estação. A senhora ao seu lado não se contentou, sua face desfalecia em desgosto com a partida do moço.
Em uma das curvas que o trem fez, surgiu então meu primeiro ato de abuso: ainda entre pálpebras, olhava a reação daquele magnífico ser. Me parecia que brotava no seu rosto rosado uma sombra de sorriso que me alegrava! As fantasias não corriam mais no ritmo do trem. O balanço suave se tornava perturbador e eu precisava satisfazer meu ego. Logo o sorriso se tornara amargo, ele via meus olhos se abrirem num preguiçoso (e fingido) movimento; ele ajeitou a postura e passou a mirar a velha rabugenta que acabara de ficar só, em seguida olhou para a janela e por fim se fixou na mulher.
Como alguém que não entende muito mas o suficiente, percebi que para o senhor havia um desejo além de tocá-la... Talvez não fosse como eu sentia ou queria, e o fato foi que ele não despregou o olho daquela bruxa (se é que aquilo no seu nariz é mesmo uma verruga!). Ao mesmo tempo que esta situação me irritava, me possibilitava seguir com os planos adiante.
Disfarçadamente coloquei minha mão dentro do bolso, virando a palma para o lado daquela perna saliente; e fingindo procurar algo toquei bem na coxa do senhor, que parecia uma grande montanha, onde com dificuldade chegaria ao topo. Pensava em ali brincar com minha “eterna infância”, que fora interrompida pelo medo. Tirei a mão do bolso colocando-a sobre minhas pernas.
Em meio à terríveis trovoadas e chuva forte pude ver que mais á frente estava um túnel, por onde o trem passaria dali alguns minutos. Seria a grande hora para me fazer feliz; com seus olhos tão longe de mim (e fixos numa outra figura) poderia me jogar em cima daquele homem robusto; poderia aperta-lhe a barriga e a face, poderia por mais um instante brincar como na infância.
Enfim o túnel! Não sabia se dispunha de muito tempo, mas uni todo meu desejo e força num pulo abocanhador...! Caí de cara no banco, sem encontrar a minha montanha, ele havia desaparecido em meio à escuridão.
Desapontada, ainda deu tempo de voltar ao meu assento e fingir-se bem antes que o túnel acabasse.
Com a volta da luz percebi que não tinha ninguém ao meu lado, olhando para frente pude ver que o “meu” senhor obeso estava sentado ao lado da velha fingindo coçar a cabeça para que ao menos seu cotovelo pudesse tocá-la... Ela retribuía com um sorriso.