Personagens na noite - homenagem à São Paulo


Personagens na noite guiados pelos traços fosforecentes dos caracóis. Isso em mil novecentos e quarenta, porque hoje em dia os personagens não andam mais às soltas por aí. Normalmente eles estão de mãos dadas e os caracóis, pobre dos caracóis, perderam a capacidade de fluorescência…estão inertes na mesma gosma de qualquer outro lesmocídio. Que aliás, diga-se de passagem, um dos nossos parentes mais próximos é um bicho horrendo que vive dentro do mar. Eu diria uma bola de pixe, mas os biólogos não iriam ficar muito contentes. Pensem bem…uma bola de pixe. Mamãe, de onde vêm os bebês ? De uma bola de pixe. Viemos todos de uma bola de pixe. Depois da chuva deveria sempre ter um acro-íris. Da mesma forma que o sol nasce todo dia. Depois da chuva deveria sempre ter um arco-íris poderia ser um exemplo das aulas de lógica. Mas não é o que acontece. Esses dias resolvi conhecer o centro da cidade, que na minha cabeça era um quadrilátero esmagado e um cruzamento. Avenida Ipiranga com a São João. De um lado, a praça da República, do outro o viaduto do Chá, do outro lado, a Estação da Luz e do último lado, a Santa Efigênia. O marco zero, bem no meio, naquela rotatória onde enfiaram um poste. Praça da Sé era só fantasia. Um lugar mítico onde as pessoas ou fazem fila, ou andam pra lá e pra cá. Uma vez li um livro que poderia se chamar Praça da Sé, um lugar fictício onde tudo começa. « Eu tenho a impressão que não é a primeira vez vez que me encontro nessa situação : com o arco completamente esticado na minha mão esquerda apontando para frente, a mão direita colocada às costas, a flecha F suspensa no ar a um terço de sua trajetória, o leão L pronto para pular a grande boca aberta e as garras para frente. Daqui um segundo, eu saberei se sim ou não a trajetória da flecha e do leão se coincidirão em um ponto X atravessado tanto por L quanto por F no mesmo segundo tx…». Um bom problema para a física, que também teria a resposta de porquê depois da chuva deveria ter sempre um arco-íris. Mas na Praça da Sé, encontrei uma igreja frequentada por pombos e um marco zero. Zero com um tatu bolinha andando bem em cima. Nesse mesmo momento, na BR-111 deve ter um filho chato sentado no banco de trás, com o corpo para frente, bem no meio do banco do motorista e do passageiro, perguntando pro pai como é que eles começam a contar os quilômetros da estrada. O pai explica que naquele caso a rodovia é federal. (Como é mesmo que eles medem as distâncias de uma rodovia federal ?) Mas que em São Paulo, por exemplo, tudo é medido em função do ponto zero que normalmente fica no centro da cidade. As ruas da cidade, as estradas, tudo é comensurado a partir desse ponto imaginário que anda sempre para os números positivos. São números reais. Fictícios, melhor dizer. Assim como a Praça da Sé da minha imaginação. Real, como ponto zero, é o tatu bola que começa sua contagem progressiva de passos. E não é que no marco zero tem um furo que deve ser a porta de entrada da frente da casa do tatu bola ! Dia de chuva deve ficar ilhado no ponto zero…É…depois da chuva deveria sempre ter um arco-íris. Mesmo durante a noite. Pelo menos assim o tatu seria iluminado. Talvez os caracóis tenham perdido sua capacidade de fluorescência devido aos arco-íris noturnos. Iluminados como os tatus bolas, perderam a capacidade de iluminar. Isso em 1940. Se bem que hoje talvez possam tornar fluorescentes os tatus bolas da Praça da Sé. Estou quase certa disto, pois numa praça imaginária com um ponto zero qualquer onde vive um tatu bola, devem existir personagens noturnos guiados pelos traços fluorescentes de alguma coisa. E como os caracóis não brilham mais, devem existir diversos personagens perdidos que vagueiam em círculos em torno do marco zero durante a penumbra da Sé. Se um dia os tatus-bola vierem a fluorescer, os personagens estarão a salvo e não precisarão andar de mãos dadas. Ao menos assim, sem as mãos atadas, eles poderão correr quando a chuva chegar. E depois de tudo terá sempre um arco-íris.