Meio pássaro


Acho que nasci meio pássaro. Não porque voe. Não porque pie, faça ninho ou se reproduza durante a primavera. Todo pássaro que é pássaro tem penas e bicos. Nem todo pássaro voa. Pinguim não voa. Eu também não.
Em todo caso, pássaro que é pássaro representa um ideal de liberdade que há tempos inspirou Ícaro, Santos Dumont e que hoje inspiram os amantes de base-jump que percorrem os fiordes da Noruega. Não salto de base-jump, nunca voei de asa-delta. Já me pendurei num varal para ver se me secava como roupa lavada-molhada. Não vôo, sou livre, mas não por isso sou pássaro.
A passarada, seja na água ou no ar, sente-se à vontade no seu meio. Rodopia e rodopia sem reclamar de tontura. Hoje mesmo um passarinho de plumas azuladas pousou num galho de árvore que começava a desabrochar. Um pássaro que é pássaro sabe se fixar no galho, mas não sabia que ele podia fazer malabarismo ! Ele rodopiava em torno do galho como um ginasta em torno de sua barra, tal qual uma espiral imóvel. O máximo que faço de malabarismo é jogar com três bolinhas, mas também não sou pássaro por isso.
Todo pássaro que voa, vê de cima. Escolhe o local onde pousar, onde dormir, onde comer, onde se acasalar. Eu sou um pássaro que vivo avoando, vivo avoando, sem nunca mais parar, ai-ai ai-ai saudade não venha me matar. Escolhi onde pousar, onde dormir, o que comer, onde me acasalar, morro de saudades, mas não é por isso que sou meio pássaro.
Minha passarice vem de outro caso.
Tem muita gente que não escolhe onde pousar. Pousa onde pousa e basta. O problema é que logo começa a piar (reclamar), deixa de fazer ninho para nunca mais se reproduzir. Faz bico (manha) e compra penas novas para se sentir melhor (saia baloné é a moda do ano). Mesmo com pena, bico e piação, esses aí não são pássaros não ! Aproveitam e pegam o avião, migram de cá prá lá três vezes ao ano para dizerem que são livres. Avião nunca foi sinônimo de liberdade. Turismo também não. Migração que é migração ocorre duas vezes ao ano, inverno lá, verão cá. Contudo, para comprar novas penas o ser humano precisa do dinheiro, do trabalho e da falsa sensação migratória durante os trinta dias por ano que nos dão. Nos dão novas penas e também as datas de nossas falsas migrações. O ser humano vai, mas vai piando. Piando porque o avião saiu atrasado, porque o ninho não era quatro-estrelas como o prometido e pia, sobretudo, porque choveu o tempo todo. Aqueles que nos dão penas e trinta dias deveriam também nos dar o sol durante o período. O que adianta chegar da migração com as penas murchas e empalidecidas ? Por isso somos humanos. Piamos o tempo todo.
Minha meia passarice não vem destas bobices, mas minha humanice. A passarice vem do fato de precisar ver de cima. Escolhi onde pousar, mas ainda quero plumas novas e bronzeadas para o verão.
Tenho do pássaro o ver de cima. Ver como num mapa. Ver como no Google Earth. Funciono assim. Nunca tinha ido até a Cidade Tiradentes, mas quando precisei, sabia a direção. Paris era uma nebulosa até subir na Torre Eiffel. A cidade do Rio era uma sempertina até sobrevoá-la. Hoje poderia ir o Oiapoque ao Chuí a pé porque já fui voando. Voando na minha memória, no meu instinto migratório que, não sei como, se instalou.
Creio assim que toda condição humana depende do ser-ver pássaro. Os falsos meio-pássaros são apenas meio-falsos humanos.