Revolução do viaduto (segundo quadro de Paul Klee)


Por um grande acaso eu acordei durante aquela madrugada. A névoa baixa umedecia meu suspiro e me embaçava os olhos ainda sujos de lágrima; a brisa que entrava pela janela soprava na cortina e algumas vezes alcançava meu rosto. Talvez fizesse sol amanhã, pensei. Mas a música que tocava não me deixou mais dormir. Ainda bem, pois foi nesta noite que a cidade me revelou seu segredo.
Começou a amanhecer somente quando fui fechar a janela. A brisa ganhou um tom alaranjado que as vezes se avermelhava; era o nascer do sol que tentava com muito esforço empurrar a névoa para o alto e tomar conta da imensidão daquele céu.
Engraçado é que dava para ver um borrão avermelhado que se alastrava pela rua, mais ou menos na altura das casas, mas ele não tomava conta do céu, não subia mais que meus olhos; parecia que tudo acabava bem ali, em cima da minha cabeça. O resto ainda era todo cinza.
Só que as coisas começaram a mudar: a vermelhidão crescia sem perder o tom borrado. Não era a manhã que acordava, mas era o fogo que ardia em brasa. Quando saí às ruas com o intuito de fugir, foi que vi mais claramente o que ali acontecia. A lava escaldante que se desprendia da névoa acinzentada se condensava em formas geométricas, mais particularmente em arcos. Estavam distribuídos aleatoriamente e os tamanhos diversos não me deixavam dúvidas em relação ao que breve comigo aconteceria. Tentando escapar do mar de lava que invadia as ruas, os moradores correram... e não conseguiram; tornaram-se estátuas vivas e encandecentes. E porque suas pernas corriam é que pareciam arcos.
O calor não se aproximava, ao contrário, a brisa continuava a soprar e esfriar minha alma. Antes mesmo das coisas ficarem mais nítidas, a névoa cinza esfacelou-se. Por um instante tudo escureceu, os arcos bateram numa rápida retirada, voltando pelo mesmo caminho rasteiro de onde vieram. O vulcão engolia sua prole protegendo-a do fogo mais ardente que se lançaria.
Quando o primeiro raio de sol iluminou toda a imensidão é que pude ver, finalmente, que perdendo suas vidas e já sujos de concreto, os arcos se compunham ordenadamente num viaduto adiante. O segredo que a noite me contava tinha terminado bem ali, onde as almas se despem ao amanhecer e ninguém vê quem elas verdadeiramente são.