UMA VISÃO INTERESSANTE PARA ENTENDER UM POUCO MAIS SOBRE A ÁFRICA


Existem somente duas tribos: os ricos e os pobres.[1]

O escritor queniano Ngugi wa Thiong'o protesta contra o emprego sistemático da noção de tribo para explicar os conflitos na África.

            O termo "tribo" é o principal obstáculo à compreensão da dinâmica da África moderna, como mostra a análise que fazem as mídias ocidentais a respeito dos acontecimentos na África. "Tribo" e sua conotação claramente pejorativa e que faz referência à ideia de primitivo e de  pré-moderna se opõem à "nação", que tem conotação mais positiva e evoca a modernidade. Toda comunidade africana é uma "tribo" e todo Africano é membro de uma tribo. Percebemos bem o absurdo do uso quando nos referimos a 30 milhões de Iorubás como uma tribo e a 4 milhões de Dinamarqueses como uma nação; 10 milhões de Ibos formam uma tribo, 250 mil Islandeses formam uma nação. Entretanto, o que é comumente designado pelo termo de tribo preenche todos os critérios que caracterizam a nação: história, geografia, vida econômica, língua e cultura comuns.
            Apesar disto, para os observadores, a "tribo" é como uma marca genética dos Africanos e que permite explicar todos e quaisquer de deus propósitos e atos, em particular com relação a outros Africanos. Ao retomar o mesmo modelo da "tribo X contra a tribo Y" as mídias - e mesmo os intelectuais progressistas- observam as origens étnicas dos principais atores de um conflito e as colocam, imediatamente, nas categorias X ou Y. Qualquer que seja a crise, qualquer que seja a região da África, qualquer que seja o período, os observadores chegam sempre a mesma explicação: tudo se deve à tradicional inimizade entre a tribo X e a tribo Y.
            Este modelo dominou o debate sobre a crise política de 2007 no Quênia: este foi analisado como um confronto entre Luos e Kikuius unicamente porque Raila Odinga, atual Primeiro-ministro e líder da oposição, é luo e Mwai Kibaki, o atual presidente, é kikuiu. E tudo o que não se enquadrou nesta bela análise, foi esquivado. Por exemplo: os Kikuius e os Luos nunca tiveram fronteira comum; assim é absurdo afirmar que são inimigos tradicionais. Mesmo o fato que os dois homens tenham contado com partidários de outras comunidades - ou que a limpeza étnica anti-Kikuius tenha ocorrido principalmente em uma circunscrição de maioria Kalenjins e em uma outra dominada pelos Massais- foi transformado em silêncio afim de não perturbar as familiares águas do conflito tribal.
            Dividir para melhor reinar. Inúmeros jornais evocaram o contínuo domínio dos Kikuius na vida econômica e política desde a independência de 1963 e mesmo antes disto. Os Britânicos dirigiram o Quênia durante sessenta anos. Em seguida, Jomo Kenyatta, um Kikuiu, governou durante 15 anos: de 1969 a 1978. Daniel Arap Moi, um Kelenjin ficou no poder durante os 24 anos seguintes, de 1978 à 2002. Contudo, as análises da situação no Quênia raramente relatam os sessenta anos de colonização britânica ou os vinte e quatro anos de ditadura Moi, preferindo se concentrar na história dos Luos contra os Kikuius ou na história da dominação ininterrupta dos Kikuius.
            Isto não significa que as comunidades africanas nunca tenham alimentado animosidades umas contra as outras. O fato é que, na África pré-colonial, vários povos disputaram bens e territórios, provocando guerras de conquista e dominação. Os célebres impérios do Gana, do Mali zulu e achanti têm suas bases na conquista e se mantiveram através de sistemas de subjugação das populações. Mas também existiram longos períodos ao longo dos quais as relações entre os mesmos grupos repousaram na paz e no comércio. A África não tem nada de particular com relação a isto. Ao longo da História, todas as relações entre comunidades oscilam entre períodos de hostilidade e de entendimento.
            É claro que os termos "tribo", "tribalismo" e "guerras tribais" são invenções coloniais. A maioria das línguas africanas não possui equivalente da palavra "tribo" e assim, as conotações pejorativas resultam da evolução do léxico antropológico dos aventureiros europeus dos séculos 18 e 19. Essas palavras têm como amigos outros conceitos coloniais como "primitivo", "continente negro" ou "raça retardada".
            Durante as conquistas coloniais, os Europeus se aliavam com uma comunidade africana para fazer submeter uma outra, não no interesse de um aliado africano, mas no próprio interesse imperial. Algumas vezes, o aliado que ajudasse a fazer submeter comunidades vizinhas era, por sua vez, submetido e restrito a viver no mesmo território que as comunidades que ele tinha ajudado a conquistar. Os Estados coloniais mantinham voluntariamente os povos colonizados em estado de tensão permanente, usando a boa e velha estratégia do "dividir para melhor reinar".
            O conflito entre a África e a Europa durante a colonização pode ser resumido a um conflito entre o capitalismo avançado da época e as economias camponesas pré-capitalistas. As disparidades de desenvolvimento regional são marcas do capitalismo em geral, principalmente do capitalismo colonial. Mas o capitalismo também aumentou a cisão entre o desenvolvimento social em cada região.
            Como as regiões coincidiam com comunidades linguísticas, as desigualdades de desenvolvimento regional e social tiveram efeitos diferentes segundo as comunidades: o que acentuou, naturalmente, as divisões dentro das comunidades e entre elas. Os movimentos de resistência anticoloniais sempre tentaram de reparar essa cisão. A visão de um futuro diferente, feito de liberdade, de democracia e prosperidade, contribuiu na modelagem de uma consciência nacional.
            Raiva de si. Mas o Estado colonial estava sempre à procura de eventuais aproximações entre comunidades. No Quênia, por exemplo, o colonizador britânico fez de tudo para tentar impedir os Africanos de criar uma organização social ou política nacional. Os colonos europeus e mesmo os imigrantes do subcontinente indiano, podiam se organizar em escala nacional, mas os Africanos só eram autorizados a formarem organizações profissionais, sociais ou políticas dentro dos limites de sua própria comunidade.
            Tais práticas e medidas favorizaram o nascimento de uma consciência étnica. O "sistema biológico" que nós viemos chamar de "tribalismo" deriva da concepção da tribo como entidade genética monolítica. A história e o uso da palavra "tribo" tiveram efeitos devastadores sobre a imagem que o resto do mundo e os próprios Africanos têm da África; tendo os intelectuais africanos interiorizado esta herança repartida do colonialismo. E eles conseguiram se enxergar mutualmente através do prisma da tribo, do tribalismo e das guerras tribais, fazendo das marcas de diferença cultural, como os rituais e até mesmo as línguas, as bases das divisões e da identidade coletiva.
            Explicar os problemas através das características biológicas  dos atores em questão significa exprimir o desespero social, pois quando um problema tem raízes biológicas, sua solução só pode ser igualmente biológica. Isto tudo conduz à indiferença das classes médias internacionais e nacionais com relação àquilo de que vivem os Africanos. Esta atitude talvez explique o fato de que as pessoas (e também os Africanos) possam assistir a um genocídio em Ruanda e no Darfour sem sentir nenhuma urgência de agir, como se esperassem que a biologia arranjasse as coisas por ela mesma. Ditaturas se instalam e as pessoas não ligam, invocam a explicação da "mentalidade tribal, tão difícil de compreender".
            Quanto à classe média africana, a raiva de si mesma é devida a interiorização do olhar colonial faz com que alguns de seus membros alegram-se de ver outros Africanos humilhados. Fechamos os olhos diante do descaso político, que é a negação dos direitos democráticos e sociais e toleramos a limpeza étnica, que é a negação do direito humano fundamental à vida. Ora, os problemas africanos, como os de todos os outros povos, têm raízes econômicas, políticas e sociais. Eles se enraízam na História e não na biologia.
            Os verdadeiros e únicos ricos. Como eu escrevi há anos, só existem duas tribos na África: os abastados e os abandonados; eles estão presentes em todas as comunidades e em graus diversos. Mas os ricos de uma comunidade têm tendência a ressaltar que os ricos de uma outra comunidade são os únicos e verdadeiros ricos ou senão, designar uma comunidade inteira como sendo aquela que monopoliza tudo. Chefes de guerra, com frequência milionários, se posicionam então em defesa da comunidade contra a comunidade inimiga dos abastados. Isto permite que tais chefes de guerra invoquem a pureza étnica como elemento indispensável à liberação econômica e política. Estes chefes de guerra concluem repetidamente contratos com empresas ocidentais, muito vantajosos para eles ou se veem prometer tais contratos se eles alcancem o poder.  O Congo é um exemplo perfeito: mesmo durante as guerras ditas "tribais", ou seja, entre chefes de guerra, sempre existe um estrangeiro para observar o que ele pode retirar dos escombros. Eu deveria ressaltar a existência de uma terceira "tribo": as empresas ocidentais.
             No caso do Quênia, seria suficiente de levar em consideração os problemas de fundo, a herança colonial, as disparidades de desenvolvimento, o crescimento da fossa entre ricos e pobres, a fraqueza das instituições democráticas, o desaparecimento da psyché nacional após vinte anos de uma ditadura apoiada pelo Ocidente, bem como o domínio dos interesses ocidentais, para destruir a bela análise da "tribo X contra a tribo Y". Mas talvez tivéssemos podido ver que existiam lições a serem tiradas da crise queniana, por exemplo: que a igualdade das condições econômicas dentro das nações e entre elas é essencial para fazer viver ideais democráticos. Considerar a África de um ângulo místico e irracional ligada à tribo nos impede de perceber que os problemas do continente estão inscritos dentro de uma problemática mundial.



[1] Texto publicado no "Courrier International", Hors Série, março-abril-maio de 2013.
Versão original do texto: francês.