Existem somente duas tribos: os ricos
e os pobres.
O
escritor queniano Ngugi wa Thiong'o protesta contra o emprego sistemático da
noção de tribo para explicar os conflitos na África.
O termo "tribo" é o principal obstáculo à
compreensão da dinâmica da África moderna, como mostra a análise que fazem as
mídias ocidentais a respeito dos acontecimentos na África. "Tribo" e
sua conotação claramente pejorativa e que faz referência à ideia de primitivo e
de pré-moderna se opõem à
"nação", que tem conotação mais positiva e evoca a modernidade. Toda
comunidade africana é uma "tribo" e todo Africano é membro de uma
tribo. Percebemos bem o absurdo do uso quando nos referimos a 30 milhões de Iorubás
como uma tribo e a 4 milhões de Dinamarqueses como uma nação; 10 milhões de
Ibos formam uma tribo, 250 mil Islandeses formam uma nação. Entretanto, o que é
comumente designado pelo termo de tribo preenche todos os critérios que
caracterizam a nação: história, geografia, vida econômica, língua e cultura
comuns.
Apesar disto, para os observadores, a "tribo" é
como uma marca genética dos Africanos e que permite explicar todos e quaisquer
de deus propósitos e atos, em particular com relação a outros Africanos. Ao
retomar o mesmo modelo da "tribo X contra a tribo Y" as mídias - e
mesmo os intelectuais progressistas- observam as origens étnicas dos principais
atores de um conflito e as colocam, imediatamente, nas categorias X ou Y.
Qualquer que seja a crise, qualquer que seja a região da África, qualquer que
seja o período, os observadores chegam sempre a mesma explicação: tudo se deve
à tradicional inimizade entre a tribo X e a tribo Y.
Este modelo dominou o debate sobre a crise política de
2007 no Quênia: este foi analisado como um confronto entre Luos e Kikuius
unicamente porque Raila Odinga, atual Primeiro-ministro e líder da oposição, é
luo e Mwai Kibaki, o atual presidente, é kikuiu. E tudo o que não se enquadrou
nesta bela análise, foi esquivado. Por exemplo: os Kikuius e os Luos nunca
tiveram fronteira comum; assim é absurdo afirmar que são inimigos tradicionais.
Mesmo o fato que os dois homens tenham contado com partidários de outras
comunidades - ou que a limpeza étnica anti-Kikuius tenha ocorrido
principalmente em uma circunscrição de maioria Kalenjins e em uma outra
dominada pelos Massais- foi transformado em silêncio afim de não perturbar as
familiares águas do conflito tribal.
Dividir
para melhor reinar. Inúmeros jornais evocaram o contínuo domínio dos Kikuius
na vida econômica e política desde a independência de 1963 e mesmo antes disto.
Os Britânicos dirigiram o Quênia durante sessenta anos. Em seguida, Jomo
Kenyatta, um Kikuiu, governou durante 15 anos: de 1969 a 1978. Daniel Arap Moi,
um Kelenjin ficou no poder durante os 24 anos seguintes, de 1978 à 2002. Contudo,
as análises da situação no Quênia raramente relatam os sessenta anos de
colonização britânica ou os vinte e quatro anos de ditadura Moi, preferindo se
concentrar na história dos Luos contra os Kikuius ou na história da dominação
ininterrupta dos Kikuius.
Isto não significa que as comunidades africanas nunca
tenham alimentado animosidades umas contra as outras. O fato é que, na África
pré-colonial, vários povos disputaram bens e territórios, provocando guerras de
conquista e dominação. Os célebres impérios do Gana, do Mali zulu e achanti têm
suas bases na conquista e se mantiveram através de sistemas de subjugação das
populações. Mas também existiram longos períodos ao longo dos quais as relações
entre os mesmos grupos repousaram na paz e no comércio. A África não tem nada
de particular com relação a isto. Ao longo da História, todas as relações entre
comunidades oscilam entre períodos de hostilidade e de entendimento.
É claro que os termos "tribo",
"tribalismo" e "guerras tribais" são invenções coloniais. A
maioria das línguas africanas não possui equivalente da palavra
"tribo" e assim, as conotações pejorativas resultam da evolução do
léxico antropológico dos aventureiros europeus dos séculos 18 e 19. Essas
palavras têm como amigos outros conceitos coloniais como "primitivo",
"continente negro" ou "raça retardada".
Durante as conquistas coloniais, os Europeus se aliavam
com uma comunidade africana para fazer submeter uma outra, não no interesse de
um aliado africano, mas no próprio interesse imperial. Algumas vezes, o aliado
que ajudasse a fazer submeter comunidades vizinhas era, por sua vez, submetido
e restrito a viver no mesmo território que as comunidades que ele tinha ajudado
a conquistar. Os Estados coloniais mantinham voluntariamente os povos
colonizados em estado de tensão permanente, usando a boa e velha estratégia do
"dividir para melhor reinar".
O conflito entre a África e a Europa durante a
colonização pode ser resumido a um conflito entre o capitalismo avançado da
época e as economias camponesas pré-capitalistas. As disparidades de
desenvolvimento regional são marcas do capitalismo em geral, principalmente do
capitalismo colonial. Mas o capitalismo também aumentou a cisão entre o
desenvolvimento social em cada região.
Como as regiões coincidiam com comunidades linguísticas,
as desigualdades de desenvolvimento regional e social tiveram efeitos
diferentes segundo as comunidades: o que acentuou, naturalmente, as divisões
dentro das comunidades e entre elas. Os movimentos de resistência anticoloniais
sempre tentaram de reparar essa cisão. A visão de um futuro diferente, feito de
liberdade, de democracia e prosperidade, contribuiu na modelagem de uma
consciência nacional.
Raiva de si.
Mas o Estado colonial estava sempre à procura de eventuais aproximações entre
comunidades. No Quênia, por exemplo, o colonizador britânico fez de tudo para
tentar impedir os Africanos de criar uma organização social ou política nacional.
Os colonos europeus e mesmo os imigrantes do subcontinente indiano, podiam se
organizar em escala nacional, mas os Africanos só eram autorizados a formarem
organizações profissionais, sociais ou políticas dentro dos limites de sua
própria comunidade.
Tais práticas e medidas favorizaram o nascimento de uma
consciência étnica. O "sistema biológico" que nós viemos chamar de
"tribalismo" deriva da concepção da tribo como entidade genética
monolítica. A história e o uso da palavra "tribo" tiveram efeitos
devastadores sobre a imagem que o resto do mundo e os próprios Africanos têm da
África; tendo os intelectuais africanos interiorizado esta herança repartida do
colonialismo. E eles conseguiram se enxergar mutualmente através do prisma da
tribo, do tribalismo e das guerras tribais, fazendo das marcas de diferença
cultural, como os rituais e até mesmo as línguas, as bases das divisões e da
identidade coletiva.
Explicar os problemas através das características
biológicas dos atores em questão
significa exprimir o desespero social, pois quando um problema tem raízes
biológicas, sua solução só pode ser igualmente biológica. Isto tudo conduz à
indiferença das classes médias internacionais e nacionais com relação àquilo de
que vivem os Africanos. Esta atitude talvez explique o fato de que as pessoas
(e também os Africanos) possam assistir a um genocídio em Ruanda e no Darfour
sem sentir nenhuma urgência de agir, como se esperassem que a biologia
arranjasse as coisas por ela mesma. Ditaturas se instalam e as pessoas não
ligam, invocam a explicação da "mentalidade
tribal, tão difícil de compreender".
Quanto à classe média africana, a raiva de si mesma é
devida a interiorização do olhar colonial faz com que alguns de seus membros
alegram-se de ver outros Africanos humilhados. Fechamos os olhos diante do
descaso político, que é a negação dos direitos democráticos e sociais e
toleramos a limpeza étnica, que é a negação do direito humano fundamental à
vida. Ora, os problemas africanos, como os de todos os outros povos, têm raízes
econômicas, políticas e sociais. Eles se enraízam na História e não na
biologia.
Os verdadeiros e
únicos ricos. Como eu escrevi há anos, só existem duas tribos na África: os
abastados e os abandonados; eles estão presentes em todas as comunidades e em
graus diversos. Mas os ricos de uma comunidade têm tendência a ressaltar que os
ricos de uma outra comunidade são os únicos e verdadeiros ricos ou senão,
designar uma comunidade inteira como sendo aquela que monopoliza tudo. Chefes de guerra, com
frequência milionários, se posicionam então em defesa da comunidade contra a comunidade
inimiga dos abastados. Isto permite que tais chefes de guerra invoquem a pureza
étnica como elemento indispensável à liberação econômica e política. Estes
chefes de guerra concluem repetidamente contratos com empresas ocidentais,
muito vantajosos para eles ou se veem prometer tais contratos se eles alcancem
o poder. O Congo é um exemplo perfeito:
mesmo durante as guerras ditas "tribais", ou seja, entre chefes de
guerra, sempre existe um estrangeiro para observar o que ele pode retirar dos
escombros. Eu deveria ressaltar a existência de uma terceira "tribo": as empresas ocidentais.
No caso do Quênia, seria suficiente de levar em
consideração os problemas de fundo, a herança colonial, as disparidades de
desenvolvimento, o crescimento da fossa entre ricos e pobres, a fraqueza das
instituições democráticas, o desaparecimento da psyché nacional após vinte anos de uma ditadura apoiada pelo
Ocidente, bem como o domínio dos interesses ocidentais, para destruir a bela
análise da "tribo X contra a tribo Y". Mas talvez tivéssemos podido
ver que existiam lições a serem tiradas da crise queniana, por exemplo: que a
igualdade das condições econômicas dentro das nações e entre elas é essencial
para fazer viver ideais democráticos. Considerar a África de um ângulo místico
e irracional ligada à tribo nos impede de perceber que os problemas do
continente estão inscritos dentro de uma problemática mundial.