Assobiei durante
horas. O pior é que estava o maior frio, já fazia noite e eu tinha que sair
para fora de casa de tempos em tempos para fazê-lo. Como a preguiça é grande,
não colocava casaco nem sapato, saia assim mesmo, de meias e camiseta.
Assobiava uma, duas, três vezes, os pés ficavam gelados e eu voltava para
dentro me esquentar. Se eu tivesse vizinho ele iria dizer "que vizinha
doida". Mas não tenho vizinho e não ia lá fora para chamar nenhum pássaro
não, nem para assobiar "Garota de Ipanema", muito menos para treinar
minhas cordas vocais. Ia de tempos em tempos para chamar meu cachorro que,
preguiça da dona, foi colocado para fora para fazer xixi, cocô e voltar para
casa batendo na porta para dizer "acabei". Esse cachorro, na verdade
uma cadela, está acostumado com essa vida de cachorro: meio sem dono para levar
para passear duas vezes por dia foi obrigado a criar independência e modos
desde cedo.
Foi assim a
primeira vez que ela nos trouxe uma galinha arrastada pelo pescoço. A cadela
levou a bronca, mas bem que gostamos de comer uma galinha ensopada. Como não
temos vizinhos, consideramos que a galinha estava perdida e não o cachorro.
Depois foi um
salame, quase inteiro. Mas sem etiqueta de procedência e data de validade,
acabamos por jogá-lo no lixo. Como não temos vizinho, decidimos que o salame
tinha sido encontrado no lixo e para ele voltaria.
Na terceira vez foi
um faisão. Ela trouxe um faisão lindo de morrer. Deu até vontade de empalhar.
Mas como faisão não é um bicho doméstico e como ele já estava meio duro, ao
contrário da galinha, consideramos que ele também estava perdido no mato onde
foi encontrado pela cadela que, por sua vez, o trouxe de presente para nós. Tal
qual o salame, o faisão foi parar no lixo.
Na quarta vez
descobrimos que a noção de vizinhança deveria ser revisitada e restaurada na
maior cordialidade possível: junto com sua irmã, as cadelas foram visitar um
vizinho criador de ovelhas e fabricador de pães. Qual a relação dos pães com as
ovelhas eu não sei, só sei que as cadelas preferiram as ovelhas aos pães e
mataram três. Ou quatro. Cinco na verdade. Sete para ser exata. Mas parece que
três morreram de medo, o que foi comprovado pela perícia que encontrou uma
montanha de cocô bem ao lado do bicho morto. Daí a expressão "cagar de
medo", sacou? E como é que a gente soube disso tudo, já que cachorro não
fala, nem morto e torturado? A cadela tem um chip e no chip tem o telefone e
endereço do proprietário. Simples. "Alô? Ah, bom dia policial...o quê?
Encontraram dois cachorros sujos de sangue correndo atrás das ovelhas do
moço?" Declaração, cartas, seguro, cartas, perícia, contra-perícia. Só
faltou advogado, juiz e tribunal. No final as cadelas confessaram o crime,
pagaram fiança e saíram abanando as caudas. Essa noite a gente comprou uma
pizza.
Em seguida teve o
cocô. Cachorro que é cachorro de verdade, que é independente e trás comida para
casa, deve saber caçar. A melhor técnica é camuflar o cheiro de cachorro
molhado e ficar o mais parecido possível com a caça, se não pela forma, pelo
odor...Então quando encontra um cocozinho de bambi, porco do mato, galinha ou
salame (ah é, salame não faz cocô), ele se esfrega todinho no achado para ficar
bem camuflado. Mas a tarefa é longa e quando o cão vê, a presa já saiu fora.
Resta ao bicho voltar para casa com a cauda entre as patas como se nada tivesse
acontecido...
Mas a melhor de
todas foi essa do assobio. Na vigésima quinta vez que meus pés gelaram lá fora
eu decidi deixá-la dormir lá fora mesmo, num frio de quatro graus Celsius
negativos. Acontece que no dia seguinte pela manhã, daquelas ainda escuras,
minha mãe e seu namorado deveriam ir embora com um carro alugado, o deixar na
locadora a 40km de casa e pegar um trem, na estação bem ao lado da locadora de
veículos. Pedi para eles que quando saíssem na manhã seguinte, se a cadela
estivesse enrolada feito rocambole na porta de casa, deixassem o bicho na
varanda. Fechei a porta, pensei num Santo qualquer, pedi que ela, a cadela, não
estivesse dizendo boa noite para um vizinho e fui dormir.
O dia seguinte
chegou, eles se foram e eu dormindo. Lá pelas tantas o telefone toca e eu, putz
" deve ser a polícia!", mas não. Era no namorado da minha mãe,
dizendo que eles tinham conseguido entregar o carro na locadora, mas junto com
as malas, saiu do porta-malas nosso cachorro!
Gente, o
cachorro!!!
Duas malas e o
cachorro.
Ele ficou guardado
lá na estação de trem a manhã inteirinha até eu ir buscar. Depois foi pro
trabalho comigo e ficou lá, deitada quietinha. E eu morrendo de dó dela e do
frio que deve ter passado dentro do porta-malas do carro.
Dó? Tenha dó!
Chego em casa já de
noite e a deixo dar uma voltinha para fazer xixi e cocô, sozinha lá fora.
Afinal, coitada, passou o dia e a noite sem fazer suas necessidades. Dez
minutos. Juro, dez minutos depois lá vem ela toda melecada de cocô. Marrom como
nunca, olhando para mim com uma cara como se tivesse dizendo "essa
história de malas, trem e trabalho não é comigo não! Me perdoe, mas estou com
uma fome de leão e vi um porco-do-mato logo alí..." Fechei a porta na cara
dela! Que vá caçar sapo lá fora.