Devaneios

 


A leste uma parafernalha arquitetônica de imóveis brancos justapostos tais quais os cubos de marshmallow do pote da confeitaria: homogêneos demais para ser bom. A oeste uma segunda parafernalha arquitetônica de imóveis brancos, como os nacos de gizes quebrados na beira da lousa. Ao norte, uma faixa de restinga de dar dó, só servia para dar aquela sensação passageira de espaço preservado. Ao sul, o mar. 

Às quinze horas o sol ia pelo sudoeste, obrigando quem estivesse na areia a colocar a mão em cima da testa para enxergar o pouco de arrebentação ou o movimento daquela gente passando encapotada por causa do frio e feliz porque os raios de sol já conseguiam esquentar metade do corpo de cada vez. Metade na ida e metade na volta, como pão na chapa que precisa virar e desvirar até torrar. Ou feito chuveiro elétrico em dias de inverno, nos quais temos que escolher o lado que vai passar frio primeiro. Pois é, do sul ao norte só as marolas. E alguma rajada intempestiva de vento.

O todo formava uma harmonia curiosa de vais e vens.

Gasparrrr!, reverberou a voz no espaço delimitado pela canga e o primeiro matinho da restinga, tirando-me de um devaneio no qual, segundo meus cálculos, havia gente ida e vinda que preferia esquentar a metade dorsal do que a frontal. Supus então que houvessem mais habitantes a leste. Supus também, como todo bom devaneio, que talvez habitassem todos a oeste, que fossem é preguiçosos: visto que o sol esquenta as moléculas de ar, provocava um certo vento imperceptível que empurrava pelas costas quem ia de oeste a leste. Empurrando ao invés de frear. De onde a preguiça de andar quase de frente pro sol.

Gaaaspar!, alongou a vogal para ver se o som ia mais longe, quebrando na diagonal o arrastar do mar. Olhei para os lados, queria ter certeza que não avistaria menino nenhum perdido, entretido com as conchas ou enfiado em um buraco qualquer da areia. Ninguém além do vai e vem da gente leste-oeste. Visivelmente eu representava, naquela configuração, uma exceção estendida, fincada no chão como bolotas de maçã de macaco criando raízes.

Gaaassparrrr! E ninguém dava atenção 


Carta de um colibri para um caramujo 3


Querido polimita,

364 e 9 décimos.
Sei porque tenho um calendário grudado na porta da geladeira. Conto um por um, senão perco as contas. Tenho um problema com o tempo porque as minhas asas não batem como as badaladas de um sino, nem como os tic e tac do relógio.
Achei que ontem fosse outubro, por exemplo.
Tinha uma piscina voltada para o céu e um horizonte estendido em cidade. Tudo meio infinito aos meus olhos. 
Inclusive você.
Infinito é uma pilha sem fim de papel extenso que imprime um no outro: você, em você, em você,... em mim.
Empilhou-te de outubro a ontem e mais nos dois terços de hoje. Tempo extenso e condensado. Um pouco como a concha em forma de espiral que você carrega nas costas. Quando vai se de-sen-ro-lan-do ganha uma outra dimensão.
Dizem que o universo é meio assim, que ele também tem um problema com o espaço-tempo, que outubro era você e ontem era eu. E às vezes, o contrário, senão tudo junto.
Já que não posso ir pros confins do universo, eu bem que te pediria para que te despisse da tua casa, para que eu possa puxar o fio da tua espiral e verificar se essa história de outra dimensão é de verdade verdadeira. 
Eu aqui falando de infinito e extenso porque é assim que eu gostaria que fosse. Sempre outubro. Um outubro imprimido no outro e no outro.
Mas no fundo, tudo isso é uma desculpa para te ver nu durante o décimo que resta, já que depois tudo revira, volta, recomeça.

Recomeça ?

Janeiro já chegou?