Solstício

 

 

 


 

E se os objetos tivessem olhos? E se ficassem entusiasmados ao se verem, e se começassem com olhares 43? Ficariam de chamego entre si. Fingiriam que eu nunca estive ali. 

A caneca de cerâmica, esguia e delicada – apesar da idade e da alça quebrada – de cima da mesa, mostraria seus motivos azuis em forma de ouriços só para ver se a fruteira reagiria a seu charme. E se a fruteira, por estar comendo com os olhos o solstício entrando pela janela, não desse nem bola? Ou quase. Se não fosse pela nobreza da caneca que custou os olhos da cara e por um certo dever em olhar coisas belas, não teria tirado os olhos do sol sumindo no horizonte. Mas sabe-se lá como, teria sentido uma coisa imponente observando-a pelas costas. Teria pensado assim: tem algo de olho em mim. Seria a senhora caneca? E teria sido. E se a fruteira dormisse com um olho aberto e outro fechado? Ela saberia, então, que há tempos a caneca andava espiando ora da mesa, ora da pia, ora da lava-louças quando a porta abria. Bem que o kiwi poderia ter avisado assim: abra os olhos fruteira, abra os olhos, essa caneca toda pomposa não é objeto para se confiar. Ela só quer te distrair. A fruteira, curiosa, não teria aguentado tamanha pressão. E se tivesse decidido enfrentar o olhar insistente da caneca? Teria ficado de olhos nos olhos com a caneca, encarando-a com um certo desdém, por alguns segundos. Depois reviraria o olhar, hum!, como se a caneca fosse transparente. Pensaria que não havia nada de mais importante, majestoso e lindo de se ver que os dias ensolarados. Que dali em diante, passariam a ser mais longos. Teria pensado nos dias que ela poderia, finalmente, acolher os damascos, os melões e as ameixas. E se, no fundo, tivesse sonhado nesse meio-tempo? Sonharia com o dia em que a caneca seria esquecida no fundo de um armário. Pelo menos até o próximo equinócio.