Pensar a questão da identidade de cada um ou de um coletivo do ponto
de vista científico me parece bem interessante, principalmente em época de mil
teorias sobre o porquê de tantos atentados terroristas no mundo ocidental.
Lavoisier, um
francês, "pai" da química moderna, disse um dia: "Na natureza
nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". Foi ele quem descobriu
que a água é formada de dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio.
Morreu guilhotinado após as palavras do presidente do Tribunal Revolucionário:
"A República não precisa nem de sábios nem de químicos". Na verdade a
República não precisava de aristocratas. Então ele morreu não por ser sábio ou
químico, mas por ser aristocrata. Mas como nada se cria, nada se perde, as
moléculas do pensamento de Lavoisier continuaram a circular pelo mundo. Todo
mal da República francesa era cortado, não pela raiz, mas pela cabeça. A
simbólica é forte: corta-se aquilo que pensa e não aquilo que originou o
pensamento. Não digo que deviam ter cortado os pés ou a cabeça de Lavoisier.
Penso que, pelo menos, o ditado em português funciona melhor: cortar o mal pela
raiz.
No meu ponto de
vista a identidade francesa foi forjada desses cortes simbólicos, dessa espécie
de crença cuja hipótese diz que é possível tapar o sol com a peneira, como se
cortar a cabeça de uns e de outros fosse essencial para a construção do
identitário da República francesa. Daí começaram a colocar maiúsculas em todas
as Ideias Humanas, das Luzes, Democrática Francesa. Vejam só: até os adjetivos
pátrios se escrevem com maiúscula: sou Isso, sou Aquilo. Até mesmo os
sobrenomes moldam uma parte essencial da Cultura francesa. Aqui, geralmente, as
pessoas são chamadas primeiramente pelo sobrenome, que se escreve em letras capitais e depois pelo nome (ou nomes). O sobrenome vem sempre do sobrenome paterno e assim
sabe-se que sou Isso, filho DISSO, tataraneto DISSO que vivia num pequeno
povoado que resistiu às invasões Romanas, Italianas, Alemãs, Inglesas,
Espanholas,...enfim, como se sou Isso DISSO fosse mais que o suficiente para
dizer, aos olhos do outro, "olhe, ele lá é Isso DISSO, então é
Francês" (sim, com maiúsculo). Aqui todo mundo chama Jean-Paul de SARTRE,
Nicolas de SARKOSY, Angela de MERKEL e eu, de mademoiselle BUENÔ.
Então imaginem que LAVOISIER
Antoine, na verdade (na minha verdade) deve ter sido guilhotinado porque se seu
conta que mesmo se "nada se cria, nada se perde, tudo se transforma",
muita coisa na sociedade francesa não se transforma coisa nenhuma. Se Lavoisier
ainda estivesse vivo teria perdido a peruca branca e estaria com os cabelos em
pé! Muita coisa, na França, é feita, é pensada, é concebida com a finalidade de
conservar essa identidade sólida, imutável. Boa parte daquilo que causa um
movimento qualquer, nas bases desta inabalável identidade, perde a cabeça! (Não podemos exagerar...desde 1360 a moeda francesa era o Franco e hoje é o
Euro ;o)). O país é laico, mas nas escolas ainda se fazem atividades extremamente
centradas na Páscoa, Natal ou Carnaval. Todos os dias do ano é um dia de um Santo cristão.
Um belo dia chega neste país um fulano que se chama Fulano de Coisa e Tal
e, coitado, é escorraçado quando vem, aperta a mão do Isso DISSO e diz :
"Bom dia, sou o de Coisa e Tal Fulano", porque aqui é assim, para ser
fino você diz primeiro teu sobrenome, claro. Mas de Coisa e Tal não soa francês
e Isso DISSO faz cara feia.
Sinceramente, se
"nada se cria, nada se perde, tudo se transforma", a sociedade
francesa, num todo, deveria se dar conta que sua identidade já foi transformada
há tempos; que Fulano da Coisa e Tal é tão francês quanto Isso DISSO. A
inclusão passa pela transformação das bases e não pelo corte de cabeça daquilo
que é avesso. Brigar contra a transformação é resistir contra a inclusão, seja
ela racial, cultural ou religiosa. Educação à diversidade é a aceitação que
mudanças sócio culturais -e portanto mudança da identidade de uma nação- são possíveis
e bem-vindas. Não estou aqui justificando os atos desumanos de uns fanáticos
que o jornal estampa bem como chamando da Coisa e Tal, estou aqui dizendo que
tapar os olhos com a peneira ou cortar o mal pela cabeça não resolve o problema.
Problema, aliás, que não é somente que de Coisa e Tal seja um terrorista, mas
que ele seja, sobretudo, um francês.