Bom dia,
sou mãe de gêmeas, falo duas línguas, tenho
dupla nacionalidade, não sou polígama, não mono ou politeísta, tenho vários
pratos preferidos, um cachorro e alguns pares de meias na gaveta. Poderia ser
mãe de um, falar uma língua, ter uma nacionalidade, ser polígama, ser mono ou
politeísta, ter um só prato predileto, dois cachorros e um par de meias na
gaveta. Pouco importa. O que me incomoda mesmo nesta sociedade são aqueles que
consideram que o ser humano deva ter monopapel, monotalento, monointeresse.
Aquele que considera que a chave da felicidade resida no monoconhecimento, no
monotrabalho, mesmo que ele não mais te agrade, não mais te provoque
curiosidade. Afinal, você tem 36 anos e não pode passar o resto da vida mudando
de emprego. Por que não acreditar no mononeurônio?
Nascemos quase vazios, como alvéolos de uma
colmeia. Aos poucos preenchemos os espaços destinados a receber o mundo a nossa
volta. Ser humano é ser que pensa, mas, sobretudo, ser que cria. Criamos os
sons de nossas línguas, os objetos que usamos, criamos mundos virtuais,
tentamos recriar a natureza, criamos mesmo aquilo que nos destrói. E se o
fazemos é porque, somos, antes de mais nada, seres curiosos do que se passa
dentro da gente, em volta da gente, além da gente. Ou pelo menos deveríamos
ser. Ou fomos, em uma certa época, quando crianças.
Pouco importa se tenho mono ou poliseiláoque para
certas coisas da vida.
Temos uma multitude de coisas na cabeça :
ideias, memórias, questões,…Não precisamos parar para pensar, não somos do tipo
a mascar chiclete sentado por não poder fazer duas coisas ao mesmo tempo (ao
menos para os que não sofrem de certas patologias). Por qual razão então,
algumas pessoas estimam que, para conquistar algo de sólido, concreto, durante
nossa existência, devemos ter uma vida profissional estável ? Estabilidade
é entendida aqui, não como a obtenção de renda estável, mas como uma linha de
um eletrocardiograma que não apresenta buracos e falhas, uma linha contínua,
uma monolinha, uma monovida profissional. Como se a conquista da existência
humana profissional dependesse dos anos passados numa mesma empresa, numa mesma
função, num mesmo cargo, num monopapel profissional. Afinal, você tem 36 anos e
não poderá mais ser bom profissionamente em outra área. Como se Sísifo fosse o
símbolo da conquista !
Poderia ser mãe de um, falar uma língua, ter
uma nacionalidade, ser polígama, ser mono ou politeísta, ter um só prato
predileto, dois cachorros e um par de meias na gaveta, mas sou mãe de gêmeas,
falo duas línguas, tenho dupla nacionalidade, não sou polígama, não mono ou
politeísta, tenho vários pratos preferidos, um cachorro, alguns pares de meias
na gaveta e tenho UMA vida. Um dia ou
vários a serem vividos, mas UMA só vida.
Como se um médico nunca pudesse se tornar um
filósofo, ou um pedreiro, carpinteiro. Ou pior ainda, como se não pudesse um
estudante em letras trabalhar numa editora, descobrir design gráfico, se tornar
design, descobrir a programação internet, se tonar programador, cansar da tela
e descobrir nas palavras que pode ser escritor e de lá autor ou ator. Talvez,
esta seria uma possibilidade, ele não tenha escolha. Ele seja condenado, seja
qual for a razão, a empurrar a mesma pedra para o mesmo lugar, dia após dia,
até o fim. Mas quando a escolha existe ? Afinal, você tem 36 anos e a
escolha existe! O que ganhamos em ser monoprofissionais, como se isso fosse
fator para nos definirmos como únicos (excepcionais)? Reconhecimento?
Dinheiro? Sabedoria? Sim, claro, existem aqueles que, por escolha, são monoprofissionais
porque são apaixonados pelo que fazem e não se vêem fazendo outra coisa.
Mas como fazem aqueles que são apaixonados por
conhecer? Fiz filosofia. Não sou filósofa. Já amei a física, a matemática. Hoje
amo origamis e animo oficinas. Nunca fiz biologia, mas sei porque os
hipopótamos são meio rosados. Não sou escritora mas de tempos em tempos
escrevo, traduzo. Não sou educadora e também trabalho num centro sociocultural.
Não sou costureira, mas adoro um pano. Ainda não sou corredora de maratonas,
não sou, ainda, desenhista. Não é que não ame o que faço profissionalmente, mas
dentro de mim existem tantas coisas que gosto, que quero aprender e viver
profissionamente! Afinal, tenho 36 anos e tenho, teóricamente, muitos dias pela
frente. Não sou nem menos nem mais que um ou outro. O que não fui e ainda
não sou, posso vir a ser, simplesmente porque gosto de saber, investigar,
experimentar até, quem sabe, saturar e mudar de direção. Posso criar meu
destino. Sou única como qualquer outro indivíduo. Não sou a melhor nem a pior
em nada que faço, mas faço o meu melhor. Sou um ser curioso. Talvez seja esta a
razão pela qual eu seja mãe de gêmeas, fale duas línguas, tenha dupla
nacionalidade, não seja polígama, não seja mono ou politeísta, tenha vários
pratos preferidos, um cachorro e alguns pares de meias na gaveta. Mas agora
isso importa. O que pouco importa é meu currículoeletrocardiogramaperfeito :
você pode jogá-lo no lixo, em meio a todos os outros. Ele não é único. Assim
como você.