MOSHI

Moshi

Maneiro, supimpa, legal pra burro, do caraio, bacana, ótimo, irado, da hora. Aqui tudo é "poa!", que quer dizer tudo aquilo ao mesmo tempo. Tudo bem? Poa. Como vai? Poa. Oi! Poa. Uma hora depois a comida chega na mesa do restaurante. Poa. É, ela é poa, a sobremesa também é poa, o povo que passa na rua também é poa, o clima é poa, até o leão é poa. Tudo é tão poa que a gente decidiu ir passar o Natal na savana, convidar uma girafa para comer um punhado de nossa acácia de natal. Vou levar umas bolinhas de neve do Kilimanjaro, plantar nos espinhos das acácias e esperar o papai Noel chegar. Poa, não?
Os jacarandás, as primaveras e os flamboaiãs estão floridos, as moças passam carregando bananas em cima da cabeça, o moço vende abacaxi e os gnus já estão no sul do Seringuete. Tem uns caras subindo o Kilimanjaro, o guarda do albergue é um Massai e a Yami descobriu que ela ama Bob Marley, Buffalo Soldier e Médine, um cantor de rap francês. Poa.
Essa noite, logo antes do galo cantar houve uma procissão bizarra, o povo cantava em coro pelas ruas, o ventilador rodava no três e eu tinha a sensação que se tratava de uma missa católica ambulante as três da matina. Poa. Depois o galo do vizinho cacarejou e o outro também, os cachorros latiram e a mesquita lançou sua prece. Poa. O sol finalmente raiou e eu lá, deitada nesta confusão de pensamentos e cogitações. 
Hoje fomos à piscina com oito crianças do orfanato. Todo mundo pirou. O sol estava de rachar, as crianças não sabem nadar e a Kimi já fala "vem", "sim" e "não" em swahili. O resto do tempo ela passa falando "look", para as crianças verem a proeza dela no nado. PoaPoa mesmo foi o café para me acordar, um antes e um depois do almoço, também lá na piscina. Frango frito e batata frita. Poa. Depois falam que na África a gente perde peso... As crianças beberam metade da água da piscina, pareciam comigo quando vi a neve pela primeira vez: como não dava para fechar a boca, por causa do sorriso, eu engolia neve e eles, água. Mas no problem, tudo poa
Jantamos carne ao molho de pimentão, umas folhas que lembram couve, arroz, abacaxi, manga e abacate.  A luz caiu. Voltou. Caiu de novo. Poa, todo mundo tem lanterna que carrega com energia solar. A energia voltou e o povo gritou: umeme! (eletricidade!) Poa!
O guarda que trabalha no turno da noite chegou, ele me disse poa Naiana! PoaJonny! 
O povo come ugali o dia todo (uma espécie de purê branco feito à base de farinha de milho) e tudo está poa. O povo anda seis horas por dia para ir e voltar do trabalho e tudo está poa. O povo ganha sessenta dólares por mês e a vida é poa. Dizem que os mais pobres são os mais felizes. É, deve ser por isso mesmo que quando não é poa é hakuna matata. E isso não é história para leão dormir. Poa. Quem vai dormir sou eu e, embaixo de um mosquiteiro, pois se tem um bicho que nunca é poa em lugar nenhum é pernilongo, ainda mais desses que têm por aqui: rajados de preto e branco, só para fingir que estão de pijama. Ou que são zebras...poa!

A síndrome das coisas perdidas de Paraty



       Depois de percorrer a rua de pedras, ela entrou na fila dos Correios de Paraty, não para postar um cartão ou uma carta, mas para consultar os arquivos do “achados e perdidos”. Era para ajudar um amigo que tinha perdido a carteira no dia anterior. O amigo, muito feliz, fora de bicicleta para comprar uns pães de queijo na padaria do bairro do Caborê, decidira sentar para tomar um café, vira um saíra de sete cores voando, perdera a noção do tempo, do espaço e fora embora, sem o pão de queijo e sem a carteira. Como ele era francês, pedira ajuda para a amiga.
     — Eu gostaria de consultar a lista de achados e perdidos de vocês, pois um amigo perdeu a carteira dele ontem...
        — Olha, moça, a lista não está atualizada não, mas dá uma olhadinha aqui nesta caixa...
      A carteira não estava lá e a moça disse para que ela fosse até as Informações Turísticas, Defesa Civil, Delegacia e, que, enfim, voltasse à padaria. É verdade que ela e o amigo já tinham voltado à padaria, mas não tinham pensado na delegacia e na defesa civil.
      — Obrigada, vou dar uma olhada nesses lugares com meu amigo — disse e se foi.
    Quando subia pela rua principal, viu uma mulher descabela, empurrando uma mala, chorando desesperada. Ela perdera o ônibus para São Paulo. Não pôde ajudar, já estava em missão de ajuda. Parece que, naquele dia, o ônibus de Angra para São Paulo saíra as 13h30 em ponto, milagre, e a mulher, que confiava no atraso quase certo do ônibus, deixara para sair de casa na última hora. Daí perdera o ônibus e o dinheiro da passagem.
      A delegacia de Paraty fica no portal, aquele cuja placa diz que Jesus é o protetor da cidade de Paraty, ou algo assim. Será que a pessoa que deixou alguém colocar aquela placa perdera o juízo? Enfim, ela entrou na delegacia e aquilo lá parecia um filme de horror: as paredes mofadas caíndo aos pedaços, com um monte de gente que perdera a liberdade.
      — Moço, um amigo meu, francês, perdeu a carteira dele ontem, vocês encontraram alguma coisa?
      — Ah, não é aqui não... vai lá na Defesa Civil...
      — Onde fica?
    — Para aqueles lados do centro histórico — respondeu e foi mexer dentro de uma gaveta enferrujada, como se tivesse dizendo “cai fora”.
       Foi o que ela fez. Tenha santa paciência, que cara que perdeu a linha!
     Voltou tudo a pé, encontrou a Defesa Civil, nada, encontrou as Informações Turísticas e nada. Contou tudo pro amigo francês, mas ele, no fundo, já tinha perdido as esperanças. Dediciram esfriar a cabeça, tomar um café no boteco e ver a maré encher as ruas perto do cais. Quem já visitou Paraty, sabe que há uma igreja perto do cais que hoje é um museu. Pois bem, sentada na frente da igreja, uma senhora orava para que o filho dela, internado no hospital da cidade, não perdesse a perna — amputada —, para que ela, desesperada, não perdesse a fé.
       Soube, um tempo depois, por alguém que ficara internado dois dias no hospital por causa de um corte na perna, que o homem que perigava perder a perna tinha dado entrada no hospital para fazer uma operação ortopédica banal, mas que pegara uma infecção e ia perder a perna, duas semanas mais tarde, no hospital do Rio.
      A maré já estava bem alta — era lua cheia — quando ela e o amigo francês viram um rapazinho que jogava umas flores nas águas na frente da escadaria de uma outra igreja. Foram olhar de mais perto, pois era uma cena bonita danada de ver: aquelas florezinhas, feitas de folha de coqueiro, boiando na água, como se fossem as traineiras boiando na baía de Paraty.
      — É você que fabrica as flores?
      — Só... é os outros acham que pá... é coisa de gente rica... mas eu tô aqui ó... que bonito... saca?
    O francês e a amiga desejaram boa sorte pro cara, que parecia ter perdido as estribeiras. E as florezinhas seguiram boiando. Os dois entraram num convercê por conta da doideira do rapaz: o francês achava que os seres humanos estavam ficando malucos; que ele ainda esperava que uma alma boa mandaria, via Correrios, a carteira dele para França, pelo menos com os documentos; que era difícil encontrar um café bom na cidade e que, enfim, ele perdera o fio da meada e que era hora de mudar de assunto. Seguiram calados pela avenida que beira o rio, até a casa onde estavam hospedados. Antes de abrir a porta, ela sugeriu que fossem até Trindade no dia seguinte.
      — De ônibus?
      — É. É tranquilo — ela respondeu.
      ...
     — Nossa, você sabe que uns tempos atrás um motorista de ônibus perdeu o controle e o ônibus caiu na descida que vai para Trindade? — ela engrenou. — Mas agora eles refizeram a estrada, tá tranquilo, mas Trindade não é mais a mesma, perdeu o charme de antes... Mas ainda é bonito, tem aquela mata toda lá no Cachadaço... é, Cachadaço é uma praia. Então amanhã a gente vai lá, tá?
      — Anrã.
      Ele tinha perdido as palavras.
     Com tanta gente perdendo tantas coisas na cidade de Paraty, achava que só sobraram as palavras para serem perdidas. Estava enganado. Naquela mesma noite, na porta do teatro de bonecos, eu encontrei com ele e soube de toda esta história. Como Paraty era uma cidade legal, esse amigo francês acabou perdendo o rumo de casa (nunca soube se a carteira dele chegara mesmo lá na França), ele ainda mora na cidade, onde trabalha como pescador. Ainda perdeu peso, ficou bonitão e, o principal: perdeu o sotaque, que era feio de doer.


VIAJAR


Viajar é uma experiência estranha: é ótimo, você descobre um lugar novo, com cheiros novos, sons novos, joga seu cotidiano pro lado e, principalmente, esquece do seu trabalho por uns dias. Ao mesmo tempo que você se deleita com esses prazeres, existe um outro lado da viagem sobre o qual quase não falamos. Quando, em meio aos novos cheiros e sons, olhamos para a paisagem ao lado, temos uma quase certeza de déjà vu. O coqueiro ali é muito parecido com aquele das praias do sul da Bahia, tem até cajueiros! Está com dor de garganta? Tome chá de alho com mel e limão. Até a língua, que no início parece indecifrável, tem um quê de déjà vu não porque ela está lá, presente todos os dias, mas porque você descobre, nos vais-e-vens das conversas, que mesa é meza e canga écanga. Então por qual razão viajar se, no fundo, vemos uma mistura de coisas já vistas? Por qual razão ir cada vez mais longe para descobrir um "mesmo"? Ao mesmo tempo que o cérebro está lá, cogitando sobre todo o dinheiro e o tempo que você gastou para chegar até aonde está, sobre o absurdo em fazer-se servir enquanto você passa o dia esticado numa rede vendo a maré descer e subir ou quando toma o chá das quatro dentro de uma barraca a cinco mil metros de altitude, tudo isso para conhecer mais uma praia, subir mais uma montanha, o seu cérebro sente uma espécie de prazer que não poderia experimentar em terreno já conhecido (será mesmo?) pelo simples fato que entre o cotidiano e o déjà vu existe uma grande diferença. Quem mora no Rio de Janeiro dificilmente olha para as montanhas todos os dias e diz "ohhh", como se todo dia fosse a primeira vez ou como se aquela vista fosse um déjà vu de algumas montanhas do norte da Tanzânia. Por outro lado, quando você corre (esporte) cotidianamente, você experimenta um prazer que é o de melhorar sua performance num percurso que, geralmente, é sempre o mesmo: você descobre cada metro do percurso para nele melhor correr...ora, por qual razão não fazemos o mesmo com as nossas vidas cotidianas? Talvez não precisássemos viajar dez mil quilômetros para descobrir que a flor de flamboaiã aqui ou ali tem o mesmo cheiro.
Contudo, mais a gente conhece estas sobreposições de déjà vus, mais a gente aprende sobre a unidade do mundo, sobre a diversidade que nos une (é, o papo é filosófico). Debaixo do flamboaiã daqui, pessoas de pele escura descansam nas horas mais quentes do sol, debaixo dos flamboaiãs de lá não há ninguém, só o mato que cresce. O coqueiro das praias da Bahia dão cocos que as pessoas bebem na praia, os coqueiros daqui dão cocos que caem na areia e ninguém dá a mínima bola.
São justamente os olhares e as intervenções dos homens que cá e lá habitam que transformam cada lugar em algo diferente daquele que você já viu. São nos detalhes que estão as diferenças. Mas só podemos vê-las se tormarmos tempo para conversar, ver, cheirar e andar por outros lugares ou por lugares que andamos todos os dias sem prestarmos muita atenção. As minhas terras têm palmeiras onde cantam o sabiá, e ao mesmo tempo o corvo daqui canta como o corvo de lá.