Ler um livro

            Antes, para ler um livro, eu precisava de um lápis de cor ou de uma canetinha, pois sem saber o som das letras achava que ler era colorir as imagens em preto e branco. Quando eram em preto e branco.
            Ler também já foi escutá-lo, contado pela boca de alguém ou de um toca discos, vinil colorido rodando trinta e três voltas por minuto, como se ler sempre tivesse um som, como se ler fosse ato não dos olhos, mas dos ouvidos. Essa leitura tinha sabor doce e sonhador, como o xarope da Mary Poppins.
            Ler foi escrever sobre as imagens, como aquele rato esperto que roeu a folha do livro, onde ele mesmo estava desenhado, para fazer um barquinho de papel e sair navegando pelo mundo. Mas as páginas do livro estavam sempre lá, nada foi roído ou molhado pelo mar.
            Quem nunca leu um livro sem parar, sem ver os ponteiros do relógio girarem e girarem? Quem nunca leu sem ler? perdendo a página marcada e sem saber se aquelas linhas já tinham sido lidas ou não?
            Ler resumo de livro. Isso é coisa de vestibulando moderno. Ler a versão incompleta. Isso é coisa de editora preguiçosa. Ler a tradução. Isso é coisa de monoglota.
            Já li começando pelo livro verde à esquerda da estante, aquele com os cortes dourados e um marcador de cetim, seguindo aos poucos para os livros da direita, mais recentes (vai saber por qual razão a gente sempre arruma os livros mais antigos lá em cima e do lado esquerdo), de capa branca, brilhante e com um marcador de livraria quem nem existe mais. Já li por cor: todos de capa ou de predominância azul. Já li porque a capa era bonita ou o título estranho. Já li só porque o título da capa estava escrito em vermelho, como se estivesse escolhendo um pimentão para comer.
            Pular páginas. Ler na transversal. Tem livro que é como uma novela: você perde um capítulo e tudo continua igual. Ler sem chegar no final. Desculpe, mas o "Cem anos de solidão" já foi e voltou várias pro lugarzinho dele na estante.
            Ler notas de rodapé[1], que sempre te obrigam a reler novamente todo o parágrafo ou a frase em questão antes de continuar. Ler por autor, por assunto, por ordem alfabética de título, ler por acaso. Ler o original, em francês, como se estivesse entendendo tudo. Já li muito Asterix sem saber que Asterix era astérisque, asterisco, Ideafix uma ideia fixa. Ler o final antes do começo, para surpreender o livro ao invés de deixá-lo te surpreender. Ler de trás para frente, num exercício constante de memória, uma espécie de futuro do pretérito. Ler em voz alta como se tudo estivesse escrito em maiúscula. Ler as entrelinhas. Ler de ponta-cabeça. O livro. Com as páginas abertas para um público mirim. Ler escorregando o dedão pelas páginas restantes só para saber se falta muito. Ler com prazo: até meia-noite e depois fecho o livro. Ler com descaso e comprar um mesmo livro duas vezes. Ler e reler. Ler e sublinhar, circundar, corrigir.

            Os modos de leitura são modos de integrar as estórias em nossas próprias histórias. Para isso deveriam servir as páginas em branco no final de cada livro: "este livro foi lido no dia tal, da seguinte forma, na seguinte situação". E só depois, lá no final o ponto final.
            E agora que você já leu todas essas linhas, vai lá, olhe qual livro está na estante, em cima e do lado esquerdo. Coitado. Não o esqueça, pois ele faz parte da tua história justamente porque você ainda não sabe como o lerá.



[1] Já leu, agora volta pro texto. 

TORCEDOR BRASILEIRO, TORCEDOR FRANCÊS / SUPPORTEUR BRÉSILIEN, SUPPORTEUR FRANÇAIS

TORCEDOR BRASILEIRO, TORCEDOR FRANCÊS

            Torcedor, de longe, parece tudo igual: colorido como um pássaro exótico, grita e anda como se existisse, único, no mundo. Mas de perto, são os detalhes que os diferenciam e, entre o torcedor brasileiro e o torcedor francês, existem diferenças fundamentais.
            Ao se aproximar do grupo, na frente da televisão (sim, falo dos torcedores televisivos), não existe sequer um torcedor francês vestido de azul, branco e vermelho, estão lá, vestidos como sempre, como se esse dia fosse um outro dia qualquer. Já o torcedor brasileiro, vem de verde e amarelo, pinta a cara, veste a camisa e acende o brilho dos olhos. Vem vestido de verde e amarelo mesmo se o jogo não for do Brasil.
            O torcedor francês é comedido: uma bola na trave merece um "ouhhhh là-là" e uma leve mão na cabeça. Já o brasileiro, pula longe do sofá, grita um punhado de palavrões, que não preciso citar, e não volta a sentar até que a bola saia da grande área.
            O torcedor francês, face à um brasileiro, é arcaico. Coitado. Fala da seleção dele, olhando para nós, brasileiros, e dizendo "1, 2, 3, zéro", como se o único momento futebolístico que existiu para eles fosse a Copa de 1998. Tão arcaico quanto a própria língua francesa, que cisma em ser A língua...das Luzes, só se for. Mais uma vez arcaica, n'est-ce pas? O brasileiro tem outras histórias para contar, pois desde então já ganhou 3 Copas das Confederações, 2 Copas América e 1 Copa do Mundo. Já teve Ronaldo, Cafu, Rivaldo, Roberto Carlos, Emerson,...hoje tem Neymar, David Luiz e até um tal de Bernard. Até parece francês, mas não é.

            Esse arcaísmo francês está até na camiseta da seleção, com uns botõezinhos que dão ares de pijama, como se fosse hora de dormir. Aliás, já estarão dormindo quando o Brasil entrar em campo contra a Colômbia, porque quem perde volta logo pra casa. O torcedor brasileiro já virou a página e entendeu que até o pensamento futebolístico, aquele da "soberania Europeia" é arcaico. Sou mais Brasil e Argentina na final! E vou assistir tudo isso ao mesmo tempo que saboreio um bom vinho francês, porque aí sim, não tem discussão, n'est-ce pas?

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SUPPORTEUR BRÉSILIEN, SUPPORTEUR FRANÇAIS

Les supporteurs, de loin, sont tous les mêmes: colorés tel un oiseau exotique, il crie et marche comme s'il existait, unique, au monde. De plus près, ce sont les détails qui les rendent différents et entre le supporteur Brésilien et celui Français existent des différences fondamentales.  
Quand on s'approche d'un groupe, face à la télé (oui, je parle des supporteurs télévisés), il n'existe aucun supporteur Français qui soit habillé en bleu, blanc, rouge, ils sot là, habillés comme toujours, comme si ce jour était un jour comme un autre quelconque.  Mais le supporteur Brésilien, lui, il vient habillé en vert et jaune, peint la figure, s'habille de son maillot et éclaire l'étincelle de ses yeux. Il vient habillé en vert et jaune même si le match n'est pas du Brésil.
Le supporteur Français est retenu: un ballon au poteau mérite un "ouhhh là-là" et une légère main à la tête. Le Brésilien, lui, saute loin du canapé, crie un tas de gros mots, je n'ai pas besoin de les citer, et ne retourne pas à sa place assisse avant que le ballon quitte la grande surface.
Le supporteur Français, face à un Brésilien, est archaïque. Ça me fait de la peine. Il parle de son équipe et nous regardant, nous les Brésiliens, et en disant "1,2,3, zéro", comme si le seul moment footballistique qui a eu lieu pour eux était la Coupe de 1998. C'est tellement archaïque, comme la langue elle-même, qui insiste d'être LA langue...des Lumières, peut-être. Encore une fois archaïque, n'est-ce pas? Le Brésilien a d'autres histoires à raconter, puisque, depuis, son équipe a déjà gagnée 3 Coupes des Confédérations, 2 Coupes de l'Amérique et 1 Coupe du Monde. Elle a déjà eu Ronaldo, Cafu, Rivaldo, Roberto Carlos, Emerson,...et aujourd'hui compte avec Neymar, David Luiz et même un certain Bernard. On dirait un Français, mais non!
Cet archaïsme Français est présent même sur son maillot à petits boutons qui lui donnent un air de pyjama, comme s'il était déjà l'heure du dodo. D'ailleurs, ils seront déjà en train de dormir quand le Brésil entrera sur le terrain contre la Colombie, parce que celui qui perd doit retourner vite à la maison. Le supporteur Brésilien a déjà tournée la page et il a compris que même cette pensée footballistique, celle de la "souveraineté Européenne" est archaïque. Je suis pour le Brésil et l'Argentine en finale! Je vais regarder à tout cela en même temps que je savoure un bon vin Français, parce que là, il n'y a pas de discussion, n'est-ce pas?